O SENSO COMUM E A BOLSA DO CIDADÃO
Luiz Carlos Azedo
Luiz Carlos Azedo
Não existe almoço grátis, reza o “economês”. O dinheiro do Bolsa Família saiu da saúde e da educação, do saneamento e da habitação, dos transportes coletivos, da segurança pública, etc
Não existe nada mais pernóstico que o senso comum com pompa e circunstância. Seu mestre foi o Conselheiro Acácio, personagem do romance O primo Basílio, de Eça de Queiroz, aquele que recomendava não descer as escadas sem segurar o corrimão. Para muita gente, a política é a arte do senso comum. Ou seja, a arte de falar aquilo que a maioria gosta de ouvir.
Duas políticas
Por exemplo, criticar o governo Lula virou suicídio, mesmo quando a atividade do sujeito é por natureza “apreender” a realidade, vê-la de forma crítica. Cientistas sociais, economistas, historiadores e — sem o mesmo rigor científico — jornalistas exercem esse papel. É óbvio que não são obrigados a isso. Há os que se dedicam a construir, defender ou simplesmente reproduzir o discurso oficial para garantir legitimidade e sustentação ao poder. Numa sociedade pluralista, isso promove o debate democrático.
Um tema interditado ao debate político é o programa Bolsa Família. Na academia todo mundo sabe que o assistencialismo é uma política de governo para mitigar as desigualdades e a exclusão e garantir base social aos que governam. O populismo da Era Vargas não mereceria esse nome se sua sustentação fosse apenas a legislação trabalhista e os sindicatos. A emergência dos trabalhadores na cena política (de classe em si à classe para si) ameaçou de ultrapassagem o populismo e entrou em choque com o coronelismo e o clientelismo. Essa já foi a proposta do PT.
O resgate do programa Comunidade Solidária, a propósito do falecimento de sua idealizadora, a antropóloga e ex-primeira-dama Ruth Cardoso, gerou desconforto aos que defendem o programa Bolsa Família de forma incondicional. Depoimentos como o da ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva sobre a visita de dona Ruth Cardoso ao Acre, num momento de enfrentamento com a bandidagem local, demonstraram a possibilidade de tratar o mesmo problema social — a exclusão — de maneira diferente. Dona Ruth buscava a afirmação da cidadania e o fomento de atividades produtivas, geradoras de trabalho e renda; criticava os laços de dependência crônica em relação ao Estado e os becos sociais sem saída do assistencialismo.
Liberal-social
Uma coisa é o assistencialismo emergencial, que ninguém questiona; outra, o clientelista. É o caso do Bolsa Família, como aponta o senador Cristovam Buarque (PDT-DF). Ex-ministro da Educação de Lula, seu programa Bolsa Escola foi detonado porque dava mais trabalho para administrar e obrigava o governo a garantir escola às crianças das famílias assistidas, uma garantia de inclusão futura. Como todo clientelismo, tem grande impacto eleitoral: beneficia 45,6 milhões de pessoas de baixíssima ou nenhuma renda, das quais cerca de 20 milhões são eleitores. Sua lógica é manter e ampliar o “estoque” de famílias, não é emancipá-las.
Qual é a origem do Bolsa Família? É o predomínio da corrente liberal-social da equipe econômica, na gestão do ex-ministro da Fazenda Antônio Palocci (ver “O que divide os economistas brasileiros”, de Edward Amadeo, Tendências, 20 de maio de 2003), que defendia a mudança da composição dos gastos públicos a favor dos mais pobres pelo critério da renda per capita como forma mais eficaz de combater as desigualdades e a exclusão(“focalização”). Os adeptos de Schumpeter e Keynes da equipe foram derrotados. Eles defendiam o combate à miséria por meio de redução da taxa de juros, elevação do poder de compra do salário mínimo, crescimento da economia e “universalização” dos serviços sociais.
Não existe almoço grátis, reza o “economês”. O dinheiro do Bolsa Família saiu da saúde e da educação, do saneamento e da habitação, dos transportes coletivos, da segurança pública, etc. A renda transferida pelo governo Lula aos mais pobres dos grotões e das periferias é a grana que faltou às demais políticas sociais e urbanas “universalistas”. Foi a escolha política que garantiu a reeleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva apesar do “mensalão” e dos “aloprados”, mas suas conseqüências são visíveis a olho nu na vida das cidades e nos serviços prestados pelo governo à população.
Quero dizer que o governo Lula desistiu do crescimento, dos empregos e dos aumentos salariais?
É claro que não. Mas é aí que o diabo mora. Não foi à toa que a “focalização” dos gastos sociais virou pensamento único, faz parte do “mais do mesmo” liberal-social (câmbio flutuante, juros altos e superávit fiscal). Já a expansão do gasto público e da arrecadação tributária acima do PIB para fomentar o crescimento é um desvio dessa linha, virou uma bomba-relógio na bolsa do cidadão. Agora, a inflação assombra o presidente Lula. Mas essa é outra história.
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