Marco Aurélio Nogueira
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
Ainda que se deva reconhecer a persistência das cenas hilárias de sempre, dos personagens improváveis e das promessas surrealistas, invariavelmente presentes em todas as eleições, dá para admitir que melhoraram o perfil e o desempenho dos candidatos a prefeito, ao menos nas grandes cidades do País, como é o caso de São Paulo.
Apoiados por especialistas em marketing e pesquisa de opinião, por estrategistas de comunicação e por um não desprezível arsenal tecnológico, os candidatos estão-se mostrando mais à altura dos cargos que almejam. Apresentam propostas concretas, buscam equacionar problemas, exibem informações e conhecimento específico, parecendo ter nas mãos as cidades que pretendem governar.
Até os partidos políticos, esses entes tão feridos em sua integridade, tão sem alma e espinha dorsal, saíram a campo em melhor forma. Posicionam-se com cautela diante de um eleitor mais informado e menos disposto a se entregar passivamente a qualquer um que lhe peça o voto. Não despejam palavrório inócuo sobre ele, nem o submetem a uma sobrecarga de pressões ideológicas. Não conseguiram aperfeiçoar substancialmente a seleção dos candidatos que integram suas listas para as Câmaras Municipais, mas se esforçaram para cumprir esse papel no que diz respeito aos que postulam o Executivo. Estão a revelar que algo se passa em seus bastidores, como se estivessem finalmente a sentir os sinais de mudança e insatisfação que há tempo têm sido emitidos pela vida social.
Elogios também para a cobertura jornalística, especialmente a da mídia escrita. Todos os grandes jornais do País se estão superando. Facilitam o contraste entre as candidaturas, mostram as frestas por onde passam as demandas da cidadania, explicam o funcionamento dos Poderes políticos e dos órgãos de governo. Além disso, funcionam como excepcionais tribunas de debates, preenchendo o vazio de discussão democrática deixado pelas campanhas mais pirotécnicas dos tempos atuais. Um canal como o que começou a ser disponibilizado pelo portal estadao.com.br pesa de modo expressivo na elevação da qualidade do processo eleitoral.
Apesar desses avanços, no entanto, as eleições transcorrem como se fossem um fardo que os cidadãos precisam carregar. Não despertam paixão cívica ou maior interesse. Ainda que mais bem informado, o eleitor parece distante, indiferente, sem estabelecer empatia com candidatos ou partidos políticos. Numa comparação arriscada, seria possível dizer que se comporta como um condômino ante a necessidade de eleger o próximo síndico.
Sempre haverá quem pondere que cidades são mesmo condomínios em escala ampliada, que os prefeitos devem cuidar delas como se fossem sua casa, mas fazendo escolhas que beneficiem a todos, sem se preocupar em favorecer este ou aquele bairro, este ou aquele partido. Muitos pensam que governar cidades é um exercício mais técnico e administrativo que político, algo que se cumpre com sucesso quanto menos política nele existir. Não é bem assim.
Primeiro de tudo, porque governar é sempre mais que administrar. Não significa apenas cuidar da casa ou pôr os papéis em ordem. É mais que manutenção e empenho para fazer os os sistemas funcionarem, mais que sabedoria para escolher auxiliares ou utilizar as finanças públicas. Prefeitos não deveriam agir como gerentes, sobretudo porque sua tarefa não é simplesmente fazer a máquina andar, e sim criar condições para que uma comunidade lute por uma vida melhor.
Gerentes administram, prefeitos governam. Mais que jogo de palavras, a frase sugere que prefeitos existem para coordenar processos abrangentes de tomada de decisões, que envolvem milhares ou milhões de pessoas, muitos interesses e expectativas. Devem lidar com correlações de forças complicadas e situações de alta complexidade, e em muitíssimos casos somente se saem bem se contarem com o apoio da população. Precisam desse apoio, aliás, desde logo, como do ar que respiram. E não podem obtê-lo se agirem como técnicos especializados em gestão e administração, pessoas talentosas em arrumar gavetas, mas sem qualquer brilho particular, sem carisma, sem liderança e, especialmente, sem um projeto que mexa com a comunidade, desperte alguma paixão e facilite engajamentos.
Tudo isso é fazer política, não administrar. Mas é fazer grande política: agir com os olhos no Estado, na comunidade política, não nos próprios interesses ou nos pequenos negócios de intermediação e favor. É ir além da rotina.
Se uma população mantém com as eleições uma relação fria e distante, encarando-as mais como obrigação do que como dever, não temos uma situação confortável. Temos, na verdade, um problema. Podemos examiná-lo lembrando que, no modo de vida atual, o eleitor é dispersivo e flutuante, não tem grupos consistentes de referência ou identidade fixa nem causas claras ou vínculos coletivos fortes. Não interage com instituições políticas qualificadas para responder às suas demandas e às questões que mexem com sua existência e com sua cabeça. É atacado sem trégua pelo mercado, que o fisga e o enreda num verdadeiro frenesi consumista. Olha a política e o Estado com desconfiança, quem sabe com a mesma postura de compra e venda que está habituado a ter no mercado.
Não se trata, portanto, de culpar o eleitor. Partidos, estrategistas e candidatos deveriam enfrentar esta “despolitização”, em vez de se amoldar a ela. Adaptando-se, contribuem para reforçá-la. Quando se apresentam como técnicos e administradores competentes sem acenar com uma proposta de cidade - ou seja, de polis, comunidade política -, somente estão a prolongar uma situação que, no limite, esvaziará a vida de sentido público.
O processo eleitoral em curso fornece excelente oportunidade para que exceções amadureçam e comecem a alçar vôo.
Marco Aurélio Nogueira, professor de Teoria Política da Unesp, é autor dos livros Em Defesa da Política (Senac, 2001) e Um Estado para a Sociedade Civil (Cortez, 2004).
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
Ainda que se deva reconhecer a persistência das cenas hilárias de sempre, dos personagens improváveis e das promessas surrealistas, invariavelmente presentes em todas as eleições, dá para admitir que melhoraram o perfil e o desempenho dos candidatos a prefeito, ao menos nas grandes cidades do País, como é o caso de São Paulo.
Apoiados por especialistas em marketing e pesquisa de opinião, por estrategistas de comunicação e por um não desprezível arsenal tecnológico, os candidatos estão-se mostrando mais à altura dos cargos que almejam. Apresentam propostas concretas, buscam equacionar problemas, exibem informações e conhecimento específico, parecendo ter nas mãos as cidades que pretendem governar.
Até os partidos políticos, esses entes tão feridos em sua integridade, tão sem alma e espinha dorsal, saíram a campo em melhor forma. Posicionam-se com cautela diante de um eleitor mais informado e menos disposto a se entregar passivamente a qualquer um que lhe peça o voto. Não despejam palavrório inócuo sobre ele, nem o submetem a uma sobrecarga de pressões ideológicas. Não conseguiram aperfeiçoar substancialmente a seleção dos candidatos que integram suas listas para as Câmaras Municipais, mas se esforçaram para cumprir esse papel no que diz respeito aos que postulam o Executivo. Estão a revelar que algo se passa em seus bastidores, como se estivessem finalmente a sentir os sinais de mudança e insatisfação que há tempo têm sido emitidos pela vida social.
Elogios também para a cobertura jornalística, especialmente a da mídia escrita. Todos os grandes jornais do País se estão superando. Facilitam o contraste entre as candidaturas, mostram as frestas por onde passam as demandas da cidadania, explicam o funcionamento dos Poderes políticos e dos órgãos de governo. Além disso, funcionam como excepcionais tribunas de debates, preenchendo o vazio de discussão democrática deixado pelas campanhas mais pirotécnicas dos tempos atuais. Um canal como o que começou a ser disponibilizado pelo portal estadao.com.br pesa de modo expressivo na elevação da qualidade do processo eleitoral.
Apesar desses avanços, no entanto, as eleições transcorrem como se fossem um fardo que os cidadãos precisam carregar. Não despertam paixão cívica ou maior interesse. Ainda que mais bem informado, o eleitor parece distante, indiferente, sem estabelecer empatia com candidatos ou partidos políticos. Numa comparação arriscada, seria possível dizer que se comporta como um condômino ante a necessidade de eleger o próximo síndico.
Sempre haverá quem pondere que cidades são mesmo condomínios em escala ampliada, que os prefeitos devem cuidar delas como se fossem sua casa, mas fazendo escolhas que beneficiem a todos, sem se preocupar em favorecer este ou aquele bairro, este ou aquele partido. Muitos pensam que governar cidades é um exercício mais técnico e administrativo que político, algo que se cumpre com sucesso quanto menos política nele existir. Não é bem assim.
Primeiro de tudo, porque governar é sempre mais que administrar. Não significa apenas cuidar da casa ou pôr os papéis em ordem. É mais que manutenção e empenho para fazer os os sistemas funcionarem, mais que sabedoria para escolher auxiliares ou utilizar as finanças públicas. Prefeitos não deveriam agir como gerentes, sobretudo porque sua tarefa não é simplesmente fazer a máquina andar, e sim criar condições para que uma comunidade lute por uma vida melhor.
Gerentes administram, prefeitos governam. Mais que jogo de palavras, a frase sugere que prefeitos existem para coordenar processos abrangentes de tomada de decisões, que envolvem milhares ou milhões de pessoas, muitos interesses e expectativas. Devem lidar com correlações de forças complicadas e situações de alta complexidade, e em muitíssimos casos somente se saem bem se contarem com o apoio da população. Precisam desse apoio, aliás, desde logo, como do ar que respiram. E não podem obtê-lo se agirem como técnicos especializados em gestão e administração, pessoas talentosas em arrumar gavetas, mas sem qualquer brilho particular, sem carisma, sem liderança e, especialmente, sem um projeto que mexa com a comunidade, desperte alguma paixão e facilite engajamentos.
Tudo isso é fazer política, não administrar. Mas é fazer grande política: agir com os olhos no Estado, na comunidade política, não nos próprios interesses ou nos pequenos negócios de intermediação e favor. É ir além da rotina.
Se uma população mantém com as eleições uma relação fria e distante, encarando-as mais como obrigação do que como dever, não temos uma situação confortável. Temos, na verdade, um problema. Podemos examiná-lo lembrando que, no modo de vida atual, o eleitor é dispersivo e flutuante, não tem grupos consistentes de referência ou identidade fixa nem causas claras ou vínculos coletivos fortes. Não interage com instituições políticas qualificadas para responder às suas demandas e às questões que mexem com sua existência e com sua cabeça. É atacado sem trégua pelo mercado, que o fisga e o enreda num verdadeiro frenesi consumista. Olha a política e o Estado com desconfiança, quem sabe com a mesma postura de compra e venda que está habituado a ter no mercado.
Não se trata, portanto, de culpar o eleitor. Partidos, estrategistas e candidatos deveriam enfrentar esta “despolitização”, em vez de se amoldar a ela. Adaptando-se, contribuem para reforçá-la. Quando se apresentam como técnicos e administradores competentes sem acenar com uma proposta de cidade - ou seja, de polis, comunidade política -, somente estão a prolongar uma situação que, no limite, esvaziará a vida de sentido público.
O processo eleitoral em curso fornece excelente oportunidade para que exceções amadureçam e comecem a alçar vôo.
Marco Aurélio Nogueira, professor de Teoria Política da Unesp, é autor dos livros Em Defesa da Política (Senac, 2001) e Um Estado para a Sociedade Civil (Cortez, 2004).
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