domingo, 17 de agosto de 2008

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS


VENCER OU VINGAR
José de Souza Martins*


A nova esquerda pensa a nova sociedade como restauração e punição, na perspectiva e limites estreitos da tradição conservadora

O debate em torno do alcance da anistia política decretada ainda no regime militar não apenas põe na agenda da nossa consciência política os temas opostos do perdão e da vingança. Sobretudo, expõe as limitações do ideário das esquerdas no Brasil, já decantado pela anômala duração do regime autoritário, que expressou a fragilidade da nossa competência democrática. Decantado, também, pela extrema fragmentação das esquerdas, que o regime acentuou, dispersas por dilemas doutrinários.

A anistia foi um convite ao esquecimento do terrorismo do Estado e dos crimes que inventou para prender, torturar e matar. Num certo sentido, na lei de anistia o regime militar reconheceu oficialmente sua derrota pela sociedade civil obstinada que, por caminho diverso daquele dos que optaram pela luta armada para derrubá-lo, acabou por vencê-lo e superá-lo. O retorno à questão da anistia, concedida pelo próprio culpado, deixa de lado o fato de que a tortura era apenas a ponta extrema de um encadeamento perverso que ia do informante ao torturador, informante que, como mostram os documentos da espionagem e da repressão políticas desde os anos 20, não raro era conhecido, vizinho, amigo e até parente da vítima. Sem contar o fato de que no regime autoritário o Estado brasileiro se duplicou. Havia o Estado legal, mutilado pelas leis de exceção, e havia o Sistema, o Estado paralelo e invisível da tortura e das verbas secretas. Havia o Estado para inglês ver e o Estado para brasileiro sentir. É estranhíssimo que se defenda o torturador como se fosse legítimo funcionário do Estado legal.

Nesse processo à margem das opções radicais, uma das grandes transformações políticas ocorridas no Brasil durante a ditadura foi a fragilização da esquerda materialista e o fortalecimento e disseminação de uma nova esquerda fortemente enraizada no pensamento religioso, em particular no pensamento católico. Isso não ocorreu apenas no Brasil. Em vários países da América Latina, sob influência da Teologia da Libertação, Marx ganhou adeptos onde até então só tivera inimigos.

Essa nova esquerda chegou ao poder na Nicarágua, com o sandinismo, e no Brasil, com o petismo, aparente mescla de esquerdas antigas e novas. Mas na verdade sólida e nova organização política e ideológica, fortemente dependente da esquerda religiosa, que entre nós se disseminou com vigor e competência, sobretudo a partir dos anos 70. Uma esquerda que nasceu a propósito para ocupar o espaço perdido pela velha esquerda, esvaziada pelas próprias contradições.

A substancial diferença entre a velha esquerda e a nova esquerda está no abandono da concepção dialética da história e sua redução a uma concepção maniqueísta e caritativa da questão social. Em relação à velha esquerda, a nova esquerda desconhece completamente o princípio da superação como ponto referencial da prática política e desconhece, em decorrência, o primado do historicamente possível na orientação da ação política. Uma renúncia completa ao reconhecimento de que o historicamente possível se propõe no plano das condições sociais e políticas do agir histórico.

Não apenas neste retorno à questão da anistia, mas no próprio móvel da nova esquerda, de que o agir político se resume à revisão da história consumada, à revisão da própria historicidade que trouxe este País até o ponto em que estamos. Em vez de transformar, retroceder. Em diferentes momentos destes últimos 30 anos temos testemunhado surtos de revisão da história, propostos como tentativas radicais de refazer o já feito. Tudo compreensivelmente dominado por uma larga e amarga consciência das grandes injustiças que marcaram a história social do Brasil ao longo dos séculos, das escravidões indígena e negra, e mesmo branca, na peonagem, até às iniqüidades sociais do presente.

Já nas comemorações do quinto centenário da descoberta do Brasil a mentalidade da nova esquerda se fez presente, na própria celebração da missa pelo enviado papal, na Bahia, na tentativa de transformá-la numa celebração alternativa que, decantando a realidade mestiça e mesclada, resgataria a pureza virginal das supostas raças constitutivas da sociedade brasileira para pedir-lhes perdão pela iniqüidade de tê-las transformado em brasileiras, é verdade que por meio de penoso, violento e iníquo processo histórico. O próprio cardeal sentiu-se obrigado a mencionar que a história não é só de perdas, mas também de ganhos. Ali, justamente, o pedido de perdão aos índios por ter o Brasil e terem os brasileiros os privado de suas terras, de sua cultura e de seus direitos imemoriais careceu de sentido. Só é legítimo e político o pedido de perdão quando a vítima a que se dirige está em condições de perdoar. Os mortos não têm como fazê-lo. No mínimo está em jogo, em casos assim, a legitimidade da representação dos que foram vitimados pelas injustiças e violências reconhecidas, que contraditoriamente são também herdeiros de seus benefícios. Em relação ao negro tem se repetido pedidos de perdão que não alteram os fatos consumados nem reorientam a sociedade no sentido de que tais iniqüidades não voltem a ocorrer.

Volta e meia, os militantes da nova concepção de revolução social se emaranham num passado idealizado, como o dessa ficção das três raças originárias, para reivindicarem e imporem mudanças em nome do pretérito. Na verdade, uma idealização vingativa do passado, em que o vingador se iguala, na lógica e nos procedimentos, aos responsáveis pelas iniqüidades cujo reparo pedem, porque pleiteiam a anulação de identidades e o apagamento da pluralidade do ser social de agora. Não há aí a concepção de superação do presente, de construção da sociedade nova que todos almejam. O mesmo ocorre em relação à anistia, 29 anos depois. A superação que se pretende baseia-se no pressuposto anti-histórico da anulação da história. A nova esquerda pensa a nova sociedade como restauração e punição, pensa-a na perspectiva e nos limites estreitos da tradição conservadora.

* José de Souza Martins é titular de Sociologia na USP e autor, entre outros, de A Sociabilidade do Homem Simples (Contexto)

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