Alberto Dines
DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)
Visto daqui de Buenos Aires o apocalipse é ainda pior: a Argentina passa pelas mesmas angústias do resto do mundo, acrescida da sua carga particular de tormentos. O efeito tango é um lânguido rodopio em direção à tragédia que jamais se consuma. Dominado pela estridência generalizada, só é percebido nas vizinhanças.
O governo dos Kirchner insiste que não há inflação, mas ela é uma realidade nos supermercados, aumenta a cada dia o escândalo das valises com os dólares de Chávez e, acuada por manchetes cada vez mais estridentes, a Casa Rosada (que não é rosada, mas ocre) investe contra a imprensa, os ruralistas ameaçam reiniciar a pressão sobre o governo e a base sindical começa a mostrar rachaduras.
O que poderia ser visto como um conjunto de telenovelas paroquiais ganha conotações catastróficas no atual cenário econômico-político. O mundo não parou para mudar, está mudando em altíssima velocidade. A vida continua, mas está evidente que não pode continuar desta maneira. Agendas e cronogramas são atropeladas sem a menor cerimônia: as eleicões americanas que deveriam converter-se em marco para os novos tempos foram, de certa forma, antecipadas. O que deveria acontecer a partir de novembro acontece agora, atabalhoadamente, neste fim de semana.
Um dos novos jornais argentinos, Crítica de la Argentina, marcado pelo sarcástico muito portenho, alcunhou o presidente americano de Bushevik (contração de Bush com bolchevique), diante da sua pressa de empurrar o Estado dentro da esfera, até então reservada, aos mercados.
Em pouco mais de duas décadas assistimos ao desmoronamento da Cortina de Ferro e ao desmatamento da selva capitalista. O modelo democrático aparentemente expandiu-se, mas ainda não está claro se foi uma expansão estrutural, profunda, ou apenas cosmética. Democracia é algo mais do que a manutenção de um calendário eleitoral. A existência de três poderes não é garantia de representatividade. Uma democracia incapacitada para criar e exercer os contra-poderes não chega a ser democracia.
O desaparecimento das principais referências ideológicas processou-se com tamanha velocidade que tornou impossível a gestação de alternativas. O fim do comunismo stalinista e este naufrágio do capitalismo selvagem não foram acompanhados pelo gradual surgimento de alternativas, simbioses ou sincretismos. Como se por alguma razão mecânica a dialética tivesse desligado o seu mecanismo gerador de sínteses.
Imaginava-se que era chegada a hora do conceito social-democrático europeu. Mas a social-democracia européia enrolou-se sozinha ao apressar a complementação do seu produto mais legítimo, a União Européia. A ampliação do clube retirou dele algumas das suas matrizes. Partidos de extrema direita, nacionalistas, com tinturas quase-fascistas, jamais poderão produzir parcerias numa entidade vocacionada para um certo progressismo, originalmente supranacional, distributivista. O que sobrou como formato político foi o caudilhismo. E este caudilhismo nao é exclusivamente latino-americano: o que Vladimir Putin está fazendo na Rússia não difere muito dos esquemas voluntaristas de Hugo Chávez. Não por acaso andam tão próximos. A diferença entre eles reside na intensidade: Putin manda matar friamente seus adversários enquanto Hugo Chávez, tocado pelo sentimentalismo latino, não chega a tanto. Pelo menos por enquanto.
Abraçado a este bonapartismo, não muito diferente em matéria de resultados, descortina-se o vasto mundo do fundamentalismo islâmico. Em alguns casos, aparentemente livre de conotações personalistas, na realidade um absolutismo ainda pior porque está entranhado de dogmas religiosos.
Há poucas semanas parecia que caminhávamos para uma reedição do crash de Wall Street em outubro de 1929. Nestas horas angustiantes, parece que outra efeméride está sendo perversamente adicionada: o início da Segunda Guerra Mundial, em setembro de 1939.
Temos o privilégio de assistir ao insólito espetáculo da história sendo reescrita. Numa situação-limite como esta, não adianta subir a serra ou descer para a praia. A próxima segunda-feira promete ser um desassossego ainda maior.
» Alberto Dines é jornalista.
DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)
Visto daqui de Buenos Aires o apocalipse é ainda pior: a Argentina passa pelas mesmas angústias do resto do mundo, acrescida da sua carga particular de tormentos. O efeito tango é um lânguido rodopio em direção à tragédia que jamais se consuma. Dominado pela estridência generalizada, só é percebido nas vizinhanças.
O governo dos Kirchner insiste que não há inflação, mas ela é uma realidade nos supermercados, aumenta a cada dia o escândalo das valises com os dólares de Chávez e, acuada por manchetes cada vez mais estridentes, a Casa Rosada (que não é rosada, mas ocre) investe contra a imprensa, os ruralistas ameaçam reiniciar a pressão sobre o governo e a base sindical começa a mostrar rachaduras.
O que poderia ser visto como um conjunto de telenovelas paroquiais ganha conotações catastróficas no atual cenário econômico-político. O mundo não parou para mudar, está mudando em altíssima velocidade. A vida continua, mas está evidente que não pode continuar desta maneira. Agendas e cronogramas são atropeladas sem a menor cerimônia: as eleicões americanas que deveriam converter-se em marco para os novos tempos foram, de certa forma, antecipadas. O que deveria acontecer a partir de novembro acontece agora, atabalhoadamente, neste fim de semana.
Um dos novos jornais argentinos, Crítica de la Argentina, marcado pelo sarcástico muito portenho, alcunhou o presidente americano de Bushevik (contração de Bush com bolchevique), diante da sua pressa de empurrar o Estado dentro da esfera, até então reservada, aos mercados.
Em pouco mais de duas décadas assistimos ao desmoronamento da Cortina de Ferro e ao desmatamento da selva capitalista. O modelo democrático aparentemente expandiu-se, mas ainda não está claro se foi uma expansão estrutural, profunda, ou apenas cosmética. Democracia é algo mais do que a manutenção de um calendário eleitoral. A existência de três poderes não é garantia de representatividade. Uma democracia incapacitada para criar e exercer os contra-poderes não chega a ser democracia.
O desaparecimento das principais referências ideológicas processou-se com tamanha velocidade que tornou impossível a gestação de alternativas. O fim do comunismo stalinista e este naufrágio do capitalismo selvagem não foram acompanhados pelo gradual surgimento de alternativas, simbioses ou sincretismos. Como se por alguma razão mecânica a dialética tivesse desligado o seu mecanismo gerador de sínteses.
Imaginava-se que era chegada a hora do conceito social-democrático europeu. Mas a social-democracia européia enrolou-se sozinha ao apressar a complementação do seu produto mais legítimo, a União Européia. A ampliação do clube retirou dele algumas das suas matrizes. Partidos de extrema direita, nacionalistas, com tinturas quase-fascistas, jamais poderão produzir parcerias numa entidade vocacionada para um certo progressismo, originalmente supranacional, distributivista. O que sobrou como formato político foi o caudilhismo. E este caudilhismo nao é exclusivamente latino-americano: o que Vladimir Putin está fazendo na Rússia não difere muito dos esquemas voluntaristas de Hugo Chávez. Não por acaso andam tão próximos. A diferença entre eles reside na intensidade: Putin manda matar friamente seus adversários enquanto Hugo Chávez, tocado pelo sentimentalismo latino, não chega a tanto. Pelo menos por enquanto.
Abraçado a este bonapartismo, não muito diferente em matéria de resultados, descortina-se o vasto mundo do fundamentalismo islâmico. Em alguns casos, aparentemente livre de conotações personalistas, na realidade um absolutismo ainda pior porque está entranhado de dogmas religiosos.
Há poucas semanas parecia que caminhávamos para uma reedição do crash de Wall Street em outubro de 1929. Nestas horas angustiantes, parece que outra efeméride está sendo perversamente adicionada: o início da Segunda Guerra Mundial, em setembro de 1939.
Temos o privilégio de assistir ao insólito espetáculo da história sendo reescrita. Numa situação-limite como esta, não adianta subir a serra ou descer para a praia. A próxima segunda-feira promete ser um desassossego ainda maior.
» Alberto Dines é jornalista.
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