José de Souza Martins*
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO /ALIÁS
Expansão municipal do PT mostra que quem ganhou não foi o partido da luta, mas o do clientelismo
Num país em que os grandes partidos têm sua identidade anulada por um número excessivo de pequenos partidos sem perfil ideológico e sem projeto político, os resultados de eleições como a eleição municipal recente são, no geral, enganadores mesmo quando não são surpreendentes. Desde que o clientelismo cedeu lugar ao populismo na política brasileira, nosso processo político é dominado por grandes eleitores invisíveis, como é o caso da nossa cultura comunitária, e partidos ocultos, como é o caso das alianças de ocasião.
O Brasil é um país em que o partidário e o propriamente político nem sempre caminham juntos. Esse desencontro manifestou-se nestas eleições. Nessa perspectiva, é possível ver na expansão municipal do PT não a vitória do partido, mas sua derrota. Nas pequenas localidades de regiões pobres fracassou o PT da luta em favor do PT do poder e do neoclientelismo do Bolsa-Família.
Não é estranho que o petismo venha sendo engolido pelo lulismo, como não serão estranhos os efeitos a médio prazo dessa metamorfose que faz de um partido de esquerda um partido populista. A prática do PT no poder não o confirmou como partido de esquerda e suas estratégias políticas o mergulham numa cultura de desgaste e perda de identidade. O PT já não é um partido alternativo, como se propunha o PT dos primeiros tempos, simplesmente porque não pode ser alternativo a si mesmo.
Além disso, o carisma de Lula, que não é necessariamente medido pelos 80% de sua popularidade, começa a encontrar seu limite. O pessoal e direto envolvimento do presidente Luiz Inácio nas campanhas eleitorais dos candidatos petistas, em São Paulo e no ABC de seu domicílio e de sua origem política, não refletiu esse carisma. Não só porque carisma é intransferível, mas também porque no caso de Lula, excetuadas as regiões remotas do País, é ele considerado pessoa para se admirar, mas não necessariamente político para se obedecer e seguir. Lula pode, até mesmo, estar tirando votos dos candidatos de seu partido. Isso, provavelmente, aconteceu tanto em São Paulo quanto no ABC.
Nesse cenário, a derrota do PT é acachapante. Em São Bernardo, lançou como candidato a prefeito um ex-ministro apoiado pelo maior cabo eleitoral do país, o presidente da República. Ali, Lula e o PT, sem o pretenderem, transformaram a eleição municipal num plebiscito para julgar o governo da República. Ao não vencerem a eleição no primeiro turno, perderam muito mais que uma eleição municipal. O mesmo vale para São Paulo, em que o PT entrou com o suposto capital social de uma candidata que é ex-prefeita e ex-ministra e também teve como cabo eleitoral o próprio Luiz Inácio. A derrota foi imensa, sobretudo porque aqui o maior eleitor de São Paulo, que é o governador José Serra, não se envolveu diretamente na campanha nem do candidato de seu partido nem do candidato da aliança política em que se apóia.
O que se agrava com a insistência na retórica de que a candidata do PT é de esquerda e representa os pobres e o candidato do DEM é de direita e representa os ricos. O que não tem apoio no patrimônio declarado da candidata petista, de mais de R$ 10 milhões, o dobro do patrimônio do candidato do DEM. O PT, em São Paulo, tornou-se prisioneiro e vítima de um periferismo antipolítico. Isso vem desde a administração de Luiza Erundina. Duas prefeitas que foram prefeitas da periferia e em nenhum momento tiveram clareza sobre a complexidade política do que vem a ser o urbano, a cidade e a metrópole. O PT revelou que não tem um projeto de revolução urbana, que transforme profundamente as condições de vida da população da metrópole. No lado oposto, desde que José Serra assumiu a Prefeitura e desde que Kassab o substituiu, fica evidente que o PSDB tem um projeto nesse sentido, ainda que tímido, numa concepção moderna e culta de metrópole.
Enquanto os votos de Kassab predominam no núcleo interior do município, os votos de Marta se distribuem num círculo ao redor desse núcleo. Há uma dinâmica nessa espacialidade eleitoral que se revela no fato de que Kassab ganhou eleitores onde Marta teve maior votação há quatro anos. E Marta não cresce onde Kassab se firma. O que tem sentido na perspectiva social-democrática, à qual o DEM aderiu na conjuntura de um pacto político que regeu sua vitória no primeiro turno.
O grande problema do PSDB, porém, é que o partido não se proponha aberta e pedagogicamente como partido da social-democracia. Num momento em que o PT já não tem condições de dizer publicamente que é um partido socialista, essa timidez do PSDB diminui o impacto que poderia ter na política brasileira. Na mesma linha de raciocínio, eu diria que o PSDB subestima e mesmo desconhece um dos grandes eleitores da política brasileira, que é a cultura comunitária de extensa parcela da população votante. O PT se apoderou desse comunitarismo sem entendê-lo e o interpretou como lealdade cega e obediente, coisa que ele não é, menos ainda em face de candidatos ricos que se passam por pobres. O PSDB aliado com o DEM, no caso de São Paulo, também sem entender exatamente o que é esse comunitarismo, empenhou-se no entanto, justamente, em governar em nome de valores comunitários, em gestos concretos de amor à cidade, em medidas civilizadas como a entrega domiciliar, regularmente, de medicamentos para os que dele necessitam, na continuidade de obras como os CEUs em nome do bem comum, porque governar é continuar o que é bom e inovar em relação ao que não o é.
No conjunto, os resultados das eleições passaram longe da concepção de que no Brasil de hoje são elas reguladas pela retórica da luta de classes e dos antagonismos sociais. Ao contrário, tanto onde o PT foi vitorioso quanto onde foi derrotado, o eleitorado mostrou-se conservador no voto e, em casos como o de São Paulo, mostrou-se conciliatoriamente moderno nas aspirações. Os eleitores recusaram a concepção depreciativa e anticomunitária de que política é o bate-boca de porta de botequim.
*José de Souza Martins é professor titular de sociologia da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros títulos, de A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34)
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO /ALIÁS
Expansão municipal do PT mostra que quem ganhou não foi o partido da luta, mas o do clientelismo
Num país em que os grandes partidos têm sua identidade anulada por um número excessivo de pequenos partidos sem perfil ideológico e sem projeto político, os resultados de eleições como a eleição municipal recente são, no geral, enganadores mesmo quando não são surpreendentes. Desde que o clientelismo cedeu lugar ao populismo na política brasileira, nosso processo político é dominado por grandes eleitores invisíveis, como é o caso da nossa cultura comunitária, e partidos ocultos, como é o caso das alianças de ocasião.
O Brasil é um país em que o partidário e o propriamente político nem sempre caminham juntos. Esse desencontro manifestou-se nestas eleições. Nessa perspectiva, é possível ver na expansão municipal do PT não a vitória do partido, mas sua derrota. Nas pequenas localidades de regiões pobres fracassou o PT da luta em favor do PT do poder e do neoclientelismo do Bolsa-Família.
Não é estranho que o petismo venha sendo engolido pelo lulismo, como não serão estranhos os efeitos a médio prazo dessa metamorfose que faz de um partido de esquerda um partido populista. A prática do PT no poder não o confirmou como partido de esquerda e suas estratégias políticas o mergulham numa cultura de desgaste e perda de identidade. O PT já não é um partido alternativo, como se propunha o PT dos primeiros tempos, simplesmente porque não pode ser alternativo a si mesmo.
Além disso, o carisma de Lula, que não é necessariamente medido pelos 80% de sua popularidade, começa a encontrar seu limite. O pessoal e direto envolvimento do presidente Luiz Inácio nas campanhas eleitorais dos candidatos petistas, em São Paulo e no ABC de seu domicílio e de sua origem política, não refletiu esse carisma. Não só porque carisma é intransferível, mas também porque no caso de Lula, excetuadas as regiões remotas do País, é ele considerado pessoa para se admirar, mas não necessariamente político para se obedecer e seguir. Lula pode, até mesmo, estar tirando votos dos candidatos de seu partido. Isso, provavelmente, aconteceu tanto em São Paulo quanto no ABC.
Nesse cenário, a derrota do PT é acachapante. Em São Bernardo, lançou como candidato a prefeito um ex-ministro apoiado pelo maior cabo eleitoral do país, o presidente da República. Ali, Lula e o PT, sem o pretenderem, transformaram a eleição municipal num plebiscito para julgar o governo da República. Ao não vencerem a eleição no primeiro turno, perderam muito mais que uma eleição municipal. O mesmo vale para São Paulo, em que o PT entrou com o suposto capital social de uma candidata que é ex-prefeita e ex-ministra e também teve como cabo eleitoral o próprio Luiz Inácio. A derrota foi imensa, sobretudo porque aqui o maior eleitor de São Paulo, que é o governador José Serra, não se envolveu diretamente na campanha nem do candidato de seu partido nem do candidato da aliança política em que se apóia.
O que se agrava com a insistência na retórica de que a candidata do PT é de esquerda e representa os pobres e o candidato do DEM é de direita e representa os ricos. O que não tem apoio no patrimônio declarado da candidata petista, de mais de R$ 10 milhões, o dobro do patrimônio do candidato do DEM. O PT, em São Paulo, tornou-se prisioneiro e vítima de um periferismo antipolítico. Isso vem desde a administração de Luiza Erundina. Duas prefeitas que foram prefeitas da periferia e em nenhum momento tiveram clareza sobre a complexidade política do que vem a ser o urbano, a cidade e a metrópole. O PT revelou que não tem um projeto de revolução urbana, que transforme profundamente as condições de vida da população da metrópole. No lado oposto, desde que José Serra assumiu a Prefeitura e desde que Kassab o substituiu, fica evidente que o PSDB tem um projeto nesse sentido, ainda que tímido, numa concepção moderna e culta de metrópole.
Enquanto os votos de Kassab predominam no núcleo interior do município, os votos de Marta se distribuem num círculo ao redor desse núcleo. Há uma dinâmica nessa espacialidade eleitoral que se revela no fato de que Kassab ganhou eleitores onde Marta teve maior votação há quatro anos. E Marta não cresce onde Kassab se firma. O que tem sentido na perspectiva social-democrática, à qual o DEM aderiu na conjuntura de um pacto político que regeu sua vitória no primeiro turno.
O grande problema do PSDB, porém, é que o partido não se proponha aberta e pedagogicamente como partido da social-democracia. Num momento em que o PT já não tem condições de dizer publicamente que é um partido socialista, essa timidez do PSDB diminui o impacto que poderia ter na política brasileira. Na mesma linha de raciocínio, eu diria que o PSDB subestima e mesmo desconhece um dos grandes eleitores da política brasileira, que é a cultura comunitária de extensa parcela da população votante. O PT se apoderou desse comunitarismo sem entendê-lo e o interpretou como lealdade cega e obediente, coisa que ele não é, menos ainda em face de candidatos ricos que se passam por pobres. O PSDB aliado com o DEM, no caso de São Paulo, também sem entender exatamente o que é esse comunitarismo, empenhou-se no entanto, justamente, em governar em nome de valores comunitários, em gestos concretos de amor à cidade, em medidas civilizadas como a entrega domiciliar, regularmente, de medicamentos para os que dele necessitam, na continuidade de obras como os CEUs em nome do bem comum, porque governar é continuar o que é bom e inovar em relação ao que não o é.
No conjunto, os resultados das eleições passaram longe da concepção de que no Brasil de hoje são elas reguladas pela retórica da luta de classes e dos antagonismos sociais. Ao contrário, tanto onde o PT foi vitorioso quanto onde foi derrotado, o eleitorado mostrou-se conservador no voto e, em casos como o de São Paulo, mostrou-se conciliatoriamente moderno nas aspirações. Os eleitores recusaram a concepção depreciativa e anticomunitária de que política é o bate-boca de porta de botequim.
*José de Souza Martins é professor titular de sociologia da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros títulos, de A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34)
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