Almir Pazzianotto Pinto
DEU NO CORREIO BRAZILIENSE
O ano principia sob duplo impacto: o da recessão mundial, da qual o Brasil não se descolou, e o das administrações municipais, renovadas no dia 1º. Quanto à crise, é recomendável deixar que os fatos falem por si, tantos têm sido os desencontros de opiniões entre economistas, jornalistas, empresários e políticos. Como de hábito, os maiores sacrifícios serão descarregados sobre as classes trabalhadoras. Os nossos assalariados permanecem órfãos de efetiva proteção, pois a única fórmula encontrada na CLT, para ocasiões como essa, determina demissões em massa após ilusório período de férias coletivas.
A renovação das administrações municipais, por sua vez, confirma o que já se esperava. A partir dos discursos de posse, podemos nos pôr de acordo em que nada mudou. Na primeira “fala do trono”, os prefeitos se queixaram de que os cofres foram encontrados vazios e as gavetas cheias — mas de dívidas e projetos inconclusos. São discursos elaborados a título de preparação do espírito popular para o esquecimento das famosas propostas de campanha. Afinal, como registrou Napoleão Bonaparte, promessas de políticos somente comprometem quem as ouve.
O que não se nota é a conjugação dos dois fatos, a crise e a tomada de posição responsável diante dos gigantescos desafios que haverão de enfrentar. Poucos prefeitos mostraram-se dispostos a cortar despesas. Pelo contrário, a tendência, mandato após mandato, consiste na ampliação do número de secretarias e na multiplicação dos cargos comissionados destinados a parentes, amigos, companheiros e membros da base de sustentação política, construída sobre os alicerces da imoralidade e da corrupção.
As câmaras municipais fazem parte do problema. Presentes em nossa história desde o período colonial, os vereadores desempenharam papel importante no processo de evolução política, como demonstra Caio Prado Júnior em livro clássico. A Carta Imperial de 1824 prescrevia que se instalassem, em todas as cidades e vilas, câmaras compostas por vereadores em número que a lei determinasse, cabendo a presidência àquele que obtivesse o maior número de votos. A Constituição de 1891 limitou a referência ao município em um único artigo, o de nº 68, onde determinava aos estados que se organizassem “de forma que fique assegurada a autonomia dos municípios, em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse”.
A Constituição em vigor inovou ao consagrar quatro dispositivos à matéria. O artigo 29, inciso IV, encerra três faixas destinadas a fixar a proporção de vereadores em relação à quantidade de habitantes. O tema é de natureza constitucional? Certamente, não. O que, então, levou os constituintes a se preocupar em descer a detalhe do qual deveriam cuidar as leis orgânicas municipais?
Ninguém melhor do que a população local para deliberar sobre a composição da Câmara de Vereadores, desde que se assuma a responsabilidade de arcar com os custos. Não é, todavia, o que se observa. Grande parte dos nossos 5.563 municípios esbanja despesas, para, depois, remeter as contas ao estado ou à União.
Espelhados nas Assembléias Legislativas, na Câmara dos Deputados e no Senado, os vereadores – salvo decrescentes exceções – desconhecem as palavras austeridade, moralidade, economia.
Controvertida emenda constitucional trata de aumentar o número de vereadores, elevando de três para 24 o número de faixas, sob o ridículo pretexto de fortalecer a base do sistema político. O país encontra-se diante de indecorosa iniciativa, informada por evidentes objetivos eleitoreiros, fruto da insensibilidade do Senado diante da recessão que chegou a galope.
A Constituição fixa os limites das despesas do Poder Legislativo Municipal, incluídos os subsídios dos vereadores e excluídos os gastos com os inativos. A experiência pós-88 revela, contudo, que sempre são encontrados meios de burlá-la, mesmo que ao preço de nova emenda. Afinal, como decretou o coronel Chico Heráclito, “a lei é como cerca; quando fraca, se vara por cima; quando forte, se vara por baixo”.
A tragédia das constituições republicanas brasileiras revela a sabedoria cínica que existe na máxima atribuída ao velho político nordestino. O art. 37 da Lei Maior ordena à administração pública, direta e indireta, que respeite os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e eficiência. Essa norma de conduta, porém, converteu-se em alvo do desprezo por aqueles que deveriam dedicar-lhe exemplar respeito.
Foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho
DEU NO CORREIO BRAZILIENSE
O ano principia sob duplo impacto: o da recessão mundial, da qual o Brasil não se descolou, e o das administrações municipais, renovadas no dia 1º. Quanto à crise, é recomendável deixar que os fatos falem por si, tantos têm sido os desencontros de opiniões entre economistas, jornalistas, empresários e políticos. Como de hábito, os maiores sacrifícios serão descarregados sobre as classes trabalhadoras. Os nossos assalariados permanecem órfãos de efetiva proteção, pois a única fórmula encontrada na CLT, para ocasiões como essa, determina demissões em massa após ilusório período de férias coletivas.
A renovação das administrações municipais, por sua vez, confirma o que já se esperava. A partir dos discursos de posse, podemos nos pôr de acordo em que nada mudou. Na primeira “fala do trono”, os prefeitos se queixaram de que os cofres foram encontrados vazios e as gavetas cheias — mas de dívidas e projetos inconclusos. São discursos elaborados a título de preparação do espírito popular para o esquecimento das famosas propostas de campanha. Afinal, como registrou Napoleão Bonaparte, promessas de políticos somente comprometem quem as ouve.
O que não se nota é a conjugação dos dois fatos, a crise e a tomada de posição responsável diante dos gigantescos desafios que haverão de enfrentar. Poucos prefeitos mostraram-se dispostos a cortar despesas. Pelo contrário, a tendência, mandato após mandato, consiste na ampliação do número de secretarias e na multiplicação dos cargos comissionados destinados a parentes, amigos, companheiros e membros da base de sustentação política, construída sobre os alicerces da imoralidade e da corrupção.
As câmaras municipais fazem parte do problema. Presentes em nossa história desde o período colonial, os vereadores desempenharam papel importante no processo de evolução política, como demonstra Caio Prado Júnior em livro clássico. A Carta Imperial de 1824 prescrevia que se instalassem, em todas as cidades e vilas, câmaras compostas por vereadores em número que a lei determinasse, cabendo a presidência àquele que obtivesse o maior número de votos. A Constituição de 1891 limitou a referência ao município em um único artigo, o de nº 68, onde determinava aos estados que se organizassem “de forma que fique assegurada a autonomia dos municípios, em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse”.
A Constituição em vigor inovou ao consagrar quatro dispositivos à matéria. O artigo 29, inciso IV, encerra três faixas destinadas a fixar a proporção de vereadores em relação à quantidade de habitantes. O tema é de natureza constitucional? Certamente, não. O que, então, levou os constituintes a se preocupar em descer a detalhe do qual deveriam cuidar as leis orgânicas municipais?
Ninguém melhor do que a população local para deliberar sobre a composição da Câmara de Vereadores, desde que se assuma a responsabilidade de arcar com os custos. Não é, todavia, o que se observa. Grande parte dos nossos 5.563 municípios esbanja despesas, para, depois, remeter as contas ao estado ou à União.
Espelhados nas Assembléias Legislativas, na Câmara dos Deputados e no Senado, os vereadores – salvo decrescentes exceções – desconhecem as palavras austeridade, moralidade, economia.
Controvertida emenda constitucional trata de aumentar o número de vereadores, elevando de três para 24 o número de faixas, sob o ridículo pretexto de fortalecer a base do sistema político. O país encontra-se diante de indecorosa iniciativa, informada por evidentes objetivos eleitoreiros, fruto da insensibilidade do Senado diante da recessão que chegou a galope.
A Constituição fixa os limites das despesas do Poder Legislativo Municipal, incluídos os subsídios dos vereadores e excluídos os gastos com os inativos. A experiência pós-88 revela, contudo, que sempre são encontrados meios de burlá-la, mesmo que ao preço de nova emenda. Afinal, como decretou o coronel Chico Heráclito, “a lei é como cerca; quando fraca, se vara por cima; quando forte, se vara por baixo”.
A tragédia das constituições republicanas brasileiras revela a sabedoria cínica que existe na máxima atribuída ao velho político nordestino. O art. 37 da Lei Maior ordena à administração pública, direta e indireta, que respeite os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e eficiência. Essa norma de conduta, porém, converteu-se em alvo do desprezo por aqueles que deveriam dedicar-lhe exemplar respeito.
Foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho
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