RENATO JANINE RIBEIRO
DEU NA FOLHA DE S. PAULO
FHC e Lula definiram um alto padrão para a função presidencial: o de líder. É o que torna difícil imaginar Dilma na Presidência
QUATRO MANDATOS sucessivos de governantes do calibre de Fernando Henrique e Lula foram definindo um alto padrão para a função presidencial: o de líder. Esse papel é referência e modelo para quem quiser o cargo em 2010. É o que torna difícil imaginar Dilma Rousseff na Presidência. Pode ser uma boa gerente de projetos, mas não é uma líder que mobilize as pessoas. Sabe ser dura e mandar. Mas a qualidade dos dois últimos presidentes é outra: persuadir, unir, em suma, liderar.
Vamos distinguir gerente, chefe e líder. Um jornalista econômico lamentava a falta de apetite gerencial de FHC. Não concordo. Gerente pode ser o governador de São Paulo, presidenciável constante, mas a quem talvez falte a fagulha da liderança.
Um presidente tem de ir além do seu partido, e não só porque vai costurar uma coalizão, mas porque precisa lidar com um país complexo e liderar, em última análise, o próprio Brasil.
Assim foi que FHC emplacou o Plano Real, as privatizações e a posse tranquila de Lula, e Lula viabilizou uma política social mais audaz e a inclusão da esquerda entre os atores políticos aceitos no país. Fossem gerentes...
Dilma presidenta seria, apesar de seus méritos, um enorme problema para o PT. Pouco do que ela diz ou faz corresponde aos valores históricos centrais do partido. Parece mais empenhada em aumentar a produção, em articular governo e empresários.
Isso deixa um vazio de valores. É como se o meio -o crescimento econômico- se tornasse fim. E os fins -múltiplos, mesmo contraditórios- que o PT propunha? Eles somem.
Imaginemos, em seu lugar, um chefe. Fernando Haddad disputa esse papel. É o único ministro importante que tem mídia constante e favorável, graças em parte a uma ótima assessoria.
Defende uma causa nobre (educação), enquanto Dilma se dispõe, para ter energia no rio Madeira, a sacrificar bagres. Melhor educar que eliminar peixes. O plano de Haddad para a educação é bem concebido, embora reste ver se e quando será executado.
Mas um chefe não é um líder. Um chefe dá ordens, nomeia, demite. Um presidente, não. O único ministro que Lula demitiu diretamente -Cristovam Buarque, por celular- lhe custou caro.
Melhor mandar um emissário pedir o cargo. Presidentes, se forem líderes, não mandam. Falam.
Seduzem. Quem chefia um ministério pode querer que ele seja homogêneo. Já um presidente administra ministros em conflito e, além disso, precisa de pontes com a oposição.
Ouvi um político francês definir um líder: "Sua melhor qualidade é que ele descobre muito rapidamente o que as pessoas querem". Esse é um dom: o líder dá menos do que as pessoas pedem, mas isso porque elas mesmas não sabem o que desejam. Tal capacidade de escutar nada tem a ver com gerenciar ou mandar. É estratégia, não tática; é persuasão, não ordem.
Não é disciplina, é conciliação.
O Brasil não terá governos de um partido só. Estamos fadados a ter maiorias de coalizão no Congresso. O presidente da República, embora poderoso (ainda bem, senão viraria refém dos parlamentares), precisa unir da esquerda do PT até Delfim Netto.
Daí que seja tão importante ele falar.
Delega a gestão a primeiros-ministros de fato, gerentes como Sérgio Motta, Dirceu, Dilma. Eles podem dizer grosserias: "masturbação mental" (Motta), "tiro no pé" (Dilma). O presidente deve se poupar.
O PT tem um líder a propor para 2010? Difícil. Uma hipótese é viabilizar Patrus Ananias, que vive uma espantosa discrição: afinal, ele tem a pasta do Bolsa Família; mas, mineiramente calado, não se queima. Porém, a prioridade um do PT é: se este é o governo mais popular em várias décadas, por que dar a sucessão a outro partido? O PT proporá um nome de dentro, mas seu estoque é pequeno.
Por outro lado, como a prioridade dois -não do PT, mas de Lula- parece ser eleger o próprio Lula em 2014, poderia ser alguém que se contentasse com um mandato. Pois, hoje, elegemos governantes por oito anos, com um "recall" no meio. Talvez Dilma tope ficar um mandato só.
Haddad, não.
Para ele, é melhor esperar do que se queimar como Medvedev brasileiro.
A alternativa é eleger alguém de oposição. O PT sairia do governo, recuperaria as raízes, Lula seria candidato natural em 2014. Mas quem a oposição tem? Serra, seu nome óbvio, lembra Dilma. Gerente, chefe, seu forte não é a persuasão. E como FHC era bom nisso! Ele e Lula, depois e ao contrário de Collor, souberam ir além de suas identidades imediatas. Mais uma vez: esse é o papel de um líder.
Por isso, Alckmin não servia. Estava longe desse perfil elevado. Serra, com esforço, talvez se torne líder.
Haddad tem tempo para isso, mas ainda não o é. Na oposição, quem hoje parece mais talhado para líder é Aécio -que tem seu primeiro-ministro, um ótimo vice, Antonio Anastasia.
Em suma, o Brasil colocou a política acima da gerência. Acho isso bom. Custa alguma coisa deixar a gestão em segundo plano, mas custaria ainda mais gerir sem apoio político. Técnicos no poder funcionaram na ditadura. Na democracia, não bastam.
Renato Janine Ribeiro, 59, é professor titular de ética e filosofia política na USP. Foi professor visitante na Universidade Columbia e diretor da Capes (2004-2008).
DEU NA FOLHA DE S. PAULO
FHC e Lula definiram um alto padrão para a função presidencial: o de líder. É o que torna difícil imaginar Dilma na Presidência
QUATRO MANDATOS sucessivos de governantes do calibre de Fernando Henrique e Lula foram definindo um alto padrão para a função presidencial: o de líder. Esse papel é referência e modelo para quem quiser o cargo em 2010. É o que torna difícil imaginar Dilma Rousseff na Presidência. Pode ser uma boa gerente de projetos, mas não é uma líder que mobilize as pessoas. Sabe ser dura e mandar. Mas a qualidade dos dois últimos presidentes é outra: persuadir, unir, em suma, liderar.
Vamos distinguir gerente, chefe e líder. Um jornalista econômico lamentava a falta de apetite gerencial de FHC. Não concordo. Gerente pode ser o governador de São Paulo, presidenciável constante, mas a quem talvez falte a fagulha da liderança.
Um presidente tem de ir além do seu partido, e não só porque vai costurar uma coalizão, mas porque precisa lidar com um país complexo e liderar, em última análise, o próprio Brasil.
Assim foi que FHC emplacou o Plano Real, as privatizações e a posse tranquila de Lula, e Lula viabilizou uma política social mais audaz e a inclusão da esquerda entre os atores políticos aceitos no país. Fossem gerentes...
Dilma presidenta seria, apesar de seus méritos, um enorme problema para o PT. Pouco do que ela diz ou faz corresponde aos valores históricos centrais do partido. Parece mais empenhada em aumentar a produção, em articular governo e empresários.
Isso deixa um vazio de valores. É como se o meio -o crescimento econômico- se tornasse fim. E os fins -múltiplos, mesmo contraditórios- que o PT propunha? Eles somem.
Imaginemos, em seu lugar, um chefe. Fernando Haddad disputa esse papel. É o único ministro importante que tem mídia constante e favorável, graças em parte a uma ótima assessoria.
Defende uma causa nobre (educação), enquanto Dilma se dispõe, para ter energia no rio Madeira, a sacrificar bagres. Melhor educar que eliminar peixes. O plano de Haddad para a educação é bem concebido, embora reste ver se e quando será executado.
Mas um chefe não é um líder. Um chefe dá ordens, nomeia, demite. Um presidente, não. O único ministro que Lula demitiu diretamente -Cristovam Buarque, por celular- lhe custou caro.
Melhor mandar um emissário pedir o cargo. Presidentes, se forem líderes, não mandam. Falam.
Seduzem. Quem chefia um ministério pode querer que ele seja homogêneo. Já um presidente administra ministros em conflito e, além disso, precisa de pontes com a oposição.
Ouvi um político francês definir um líder: "Sua melhor qualidade é que ele descobre muito rapidamente o que as pessoas querem". Esse é um dom: o líder dá menos do que as pessoas pedem, mas isso porque elas mesmas não sabem o que desejam. Tal capacidade de escutar nada tem a ver com gerenciar ou mandar. É estratégia, não tática; é persuasão, não ordem.
Não é disciplina, é conciliação.
O Brasil não terá governos de um partido só. Estamos fadados a ter maiorias de coalizão no Congresso. O presidente da República, embora poderoso (ainda bem, senão viraria refém dos parlamentares), precisa unir da esquerda do PT até Delfim Netto.
Daí que seja tão importante ele falar.
Delega a gestão a primeiros-ministros de fato, gerentes como Sérgio Motta, Dirceu, Dilma. Eles podem dizer grosserias: "masturbação mental" (Motta), "tiro no pé" (Dilma). O presidente deve se poupar.
O PT tem um líder a propor para 2010? Difícil. Uma hipótese é viabilizar Patrus Ananias, que vive uma espantosa discrição: afinal, ele tem a pasta do Bolsa Família; mas, mineiramente calado, não se queima. Porém, a prioridade um do PT é: se este é o governo mais popular em várias décadas, por que dar a sucessão a outro partido? O PT proporá um nome de dentro, mas seu estoque é pequeno.
Por outro lado, como a prioridade dois -não do PT, mas de Lula- parece ser eleger o próprio Lula em 2014, poderia ser alguém que se contentasse com um mandato. Pois, hoje, elegemos governantes por oito anos, com um "recall" no meio. Talvez Dilma tope ficar um mandato só.
Haddad, não.
Para ele, é melhor esperar do que se queimar como Medvedev brasileiro.
A alternativa é eleger alguém de oposição. O PT sairia do governo, recuperaria as raízes, Lula seria candidato natural em 2014. Mas quem a oposição tem? Serra, seu nome óbvio, lembra Dilma. Gerente, chefe, seu forte não é a persuasão. E como FHC era bom nisso! Ele e Lula, depois e ao contrário de Collor, souberam ir além de suas identidades imediatas. Mais uma vez: esse é o papel de um líder.
Por isso, Alckmin não servia. Estava longe desse perfil elevado. Serra, com esforço, talvez se torne líder.
Haddad tem tempo para isso, mas ainda não o é. Na oposição, quem hoje parece mais talhado para líder é Aécio -que tem seu primeiro-ministro, um ótimo vice, Antonio Anastasia.
Em suma, o Brasil colocou a política acima da gerência. Acho isso bom. Custa alguma coisa deixar a gestão em segundo plano, mas custaria ainda mais gerir sem apoio político. Técnicos no poder funcionaram na ditadura. Na democracia, não bastam.
Renato Janine Ribeiro, 59, é professor titular de ética e filosofia política na USP. Foi professor visitante na Universidade Columbia e diretor da Capes (2004-2008).
Nenhum comentário:
Postar um comentário