quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Ressacas da grande festa

Maria Clara R. M. do Prado
DEU NO VALOR ECONÔMICO


De tudo o que se tem ouvido sobre a crise e o pós-crise, poucas avaliações merecem leitura cuidadosa na certeza de que há ali algo de profundo e coerente.

Por sorte, alguns dos poucos grandes economistas brasileiros existentes, refratários que são às luzes da ribalta e à incômoda eventualidade da crítica, emergem de vez em quando de seus retiros para elucidar fatos e melhor organizar o entendimento das relações entre causas e efeitos dos fenômenos econômicos.

Assim se encaixa o recente escrito de André Lara Resende, apresentado em seminário na Casa das Garças em dezembro e muito apropriadamente intitulado "Em Plena Crise: Uma Tentativa de Recomposição Analítica". Ele fala da confiança exagerada no desenvolvimento das políticas macroeconômicas e no bom funcionamento dos mercados e de como essa confiança explica os excessos das últimas décadas, além da incapacidade de compreender os riscos incorridos.

A recomposição analítica de André - autor em 1985, junto com Pérsio Arida, do plano Larida, que anos mais tarde foi o embrião teórico do Plano Real - parte dos quatro elementos constitutivos do que consensualmente era visto como boa gestão macroeconômica: 1) política monetária ativa, com BC independente e metas de inflação; 2) livre movimento internacional de capitais; 3) câmbio flutuante, com mínima intervenção e 4) política fiscal que mantenha em torno de 50% a relação dívida/PIB.

A confiança de investidores internacionais é a argamassa dos quatro pilares. Mas isso não foi suficiente para evitar as várias crises ocorridas nas últimas três décadas nos países periféricos. Aqui entra o que André chama de confiança condicional, aquela que se referencia à instabilidade inerente à sua adoção.

"A razão dessa instabilidade é que a teoria determina que para se ter os dois primeiros elementos, isto é, para poder ter simultaneamente uma política monetária ativa e o livre movimento de capitais, é necessário adotar também o terceiro, o câmbio flutuante. Ocorre que, especialmente para as economias que não têm confiança irrestrita, o câmbio flutuante é fonte de instabilidade e de perturbações. O ideal seria ter um câmbio administrado para garantir baixa volatilidade, maior previsibilidade e menores perturbações, tanto sobre o preço e o controle da inflação, como sobre o bom andamento dos fluxos do comércio internacional", diz ele.

E segue: "se o quarteto (os quatro pilares) é potencialmente instável, e se sem ele não há confiança, o resultado são crises recorrentes (nos países periféricos)". Como se uma espécie de incongruência latente se impusesse aos países em desenvolvimento, instados que foram a adotar todos os pilares da boa gestão macro mas sempre sujeitos à desconfiança inerente à função do câmbio flutuante na equação.

Uma vez desencadeada a crise, a instabilidade do quarteto macro adquire um aspecto perverso que agrava os elementos recessivos do fim do ciclo de expansão.

Nesse ponto, André Lara Resende amplia sua análise para o contexto da crise global ao chamar a atenção para o fato de que os ciclos econômicos "não são internacionalmente sincronizados". A adoção de uma política monetária restritiva para controlar pressões inflacionárias internas em ambiente de baixas taxas de juros internacionais valoriza a moeda até que o desequilíbrio externo passa a ser percebido como insustentável. E vice-versa. Resulta daí, em ambas as situações, uma pressão perturbadora sobre a taxa de câmbio.

A situação difere nos países centrais, detentores de moeda-reserva (EUA, Japão e zona do Euro, além de Inglaterra e Suíça) onde a confiança é irrestrita, não havendo portanto instabilidade na adoção do câmbio flutuante. Ali, "a desvalorização da moeda deixa de ser um fator agravante de uma eventual crise para se converter em parte da solução do problema".

Os emissores de moeda-reserva (ou moeda com conversibilidade plena) não têm restrição externa ao crescimento da demanda, uma vez que a única restrição efetiva é o risco de inflação. Nos países periféricos a restrição relevante é externa, via balanço de pagamentos. Por isso o câmbio é tão fundamental para a periferia.

Lembra que nos países centrais a restrição interna se dá via Curva de Phillips, que em seu original prevê duas opções estanques: mais emprego com mais inflação ou menos inflação com menos emprego. Trata-se da célebre dicotomia entre crescer e estabilizar. A relação foi aperfeiçoada com a chamada Hipótese das Expectativas Racionais, que abriu caminho para o conceito de metas inflacionárias a partir do início dos anos 90.

Todos são conceitos e fórmulas que lidam com a inflação na sua concepção tradicional, resultado da variação dos preços dos bens e serviços. André chama atenção nesse ponto para a inflação dos ativos, que não é captada por nenhum índice convencional de preços. Daí, provavelmente, a complacência do Fed dos Estados Unidos, criticado por André em seu texto: "o Fed de Greenspan, embalado na credibilidade conquistada, esqueceu-se da máxima de William McCheney Martin Jr (presidiu o Fed entre 1951 e 1970): o papel do Banco Central é tirar a jarra de bebida quando a festa começa a ficar animada", escreve.

Para André, a crise global é o resultado do contágio pela "generalização das festas". Dedica um capítulo ao tema. Também trata da deflação e coloca pertinente foco na perigosa política das autoridades norte-americanas de injetar dinheiro na economia por meio da compra de ativos privados podres. Por fim, trata dos riscos do gradualismo e levanta um ponto crucial: se será possível aos EUA passarem de forma gradual, sem descontinuidades, da deflação para uma pequena inflação, necessária para acelerar a digestão das dívidas? O grande e ainda não concretizado risco seria o de uma brusca desvalorização do dólar.

No final, André deixa um alerta a quem interessar possa: "o realismo da análise, sem o qual não há como bem agir, não deve ser afastado em nome do otimismo, nesse momento, mais incompetente do que ingênuo", diz, concluindo que "a capacidade de compreender o quadro mundial e nossa especificidade é mais importante do que a tentativa de fazer previsões".

Maria Clara R. M. do Prado, jornalista, é sócia diretora da Cin - Comunicação Inteligente e autora do livro "A Real História do Real". Escreve quinzenalmente, às quintas-feiras.

PS: O texto de André Lara Resende foi publicado no meu Blog, sexta-feira 9/1/2009.

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