Merval Pereira
DEU EM O GLOBO
NOVA YORK. O assessor especial da Presidência da República Marco Aurélio Garcia não apenas lê jornal como comenta o que lê. A respeito de minha coluna de ontem sobre a posição do governo brasileiro no conflito entre Israel e o Hamas, Marco Aurélio me mandou um e-mail - não é a primeira vez que o faz - que contém algumas revelações importantes, embora tenha também insanáveis contradições. Começa afirmando que minha tentativa "de estabelecer dicotomias na política externa brasileira, conduzida de forma qualificada pelo Itamaraty, não é original", para reafirmar sua polêmica posição: "Por que a morte de civis pelo Hamas é terrorismo e a morte de crianças pelas tropas de Israel não o é?".
O assessor especial da Presidência espanta-se que um comentário seu tenha sido apresentado como "posição do governo brasileiro", e apela: "Que fique claro: condeno todos os terrorismos".
Segundo ele, o Brasil tem uma só posição, "aquela definida pelo presidente Lula no Recife, em função da qual o ministro Amorim está desenvolvendo intensa atividade no Oriente Médio: lograr um cessar-fogo imediato e instaurar um subsequente processo de negociação com ampliada participação de países".
Para Marco Aurélio Garcia, "a condenação das ações do governo israelense é uma coisa, outra é a defesa intransigente do Estado de Israel, posição tradicional da diplomacia brasileira e minha em particular".
Para ele, "a nota do PT, cuja adjetivação não me parece adequada, deveria ter reiterado a orientação histórica do partido de defesa da existência do Estado de Israel".
O êxito da missão do chanceler Celso Amorim na busca de um acordo entre Israel e o Hamas na Faixa de Gaza não parece provável para Celso Lafer, chanceler no governo Fernando Henrique, que não vê a diplomacia brasileira em condições de exercer o papel tradicional de "terceiro" na solução pacífica de controvérsia, aquele que consegue lidar com aquelas coisas que as partes não conseguem resolver.
Na definição clássica, o Egito e a França estão prestando "bons ofícios" na negociação da crise, oferecendo um canal de comunicação para a retomada de negociações, "já que Israel tem dificuldade de conversar com o Hamas, que denega a sua existência, e o Hamas também não quer conversar com Israel, e o Egito, que tem interesse em encaminhar o assunto, oferece seus "bons ofícios"".
A mediação, indo além dos "bons ofícios", lembra Lafer, procura reconciliar pontos de vista e pode dar soluções de compromisso.
O "terceiro" pode ser tanto um Estado quanto uma organização internacional, que precisa de certas qualificações para atuar: "a imparcialidade, a objetividade, a autoridade e também recursos de poder"
Relembrando o historiador alemão Theodor Mommsen, o ex-chanceler acentua que "a autoridade é mais que um conselho e menos que um comando". Um bom exemplo seria a mediação do Papa João Paulo II, nos anos 1970 do século passado, no capítulo do Canal de Beagle entre o Chile e a Argentina: "O Papa não tinha poder mas tinha autoridade", comenta Lafer.
O Brasil teve um papel importante no encaminhamento da solução da disputa territorial entre o Peru e o Equador no governo Fernando Henrique, quando atuou como mediador.
E há o caso recente entre o Equador, a Colômbia e as Farc, no qual, na análise de Lafer, houve uma atuação construtiva da OEA e do Grupo do Rio, "mas também os que atrapalharam, como Hugo Chávez, seja pelo apoio dado ao Equador, seja pela simpatia pelas Farc".
Na nossa região, há um contencioso importante que é o das papeleiras do Uruguai, que provoca uma crise entre Argentina e Uruguai que está na Corte de Haia. O Uruguai garante que não provoca danos ambientais, que a Argentina acusa de estarem acontecendo.
Lafer lembra que o assunto está gerando "uma enorme dificuldade no âmbito do Mercosul, e é parte da oposição do Uruguai a Kirchner ser presidente da Unasul". Para Celso Lafer, "neste caso que diz respeito ao Mercosul, a dois vizinhos nossos em relação aos quais o Brasil deveria ter preocupações, há uma omissão nítida do governo".
Sendo assim, raciocina Lafer, "por que o chanceler Amorim está se animando com a possibilidade de ter um papel na negociação de Gaza? Não estamos vendo nem a Rússia, nem a China, nem a Índia fazendo alguma coisa, para dar exemplo de possíveis interlocutores nessa área".
Para ele, "quando o PT emite uma nota oficial falando sobre a causa palestina, o terrorismo de Estado, a contestação ao Estado de Israel, e vem o assessor do presidente da República Marco Aurélio Garcia, que está ligado ao PT, também qualificar a atitude de Israel de terrorismo de Estado, você elimina a possibilidade de o país ter um papel mais atuante".
O ex-chanceler brasileiro classifica essa tentativa do governo atual de "conversa mole para boi dormir do ponto de vista internacional, e, do ponto de vista interno, uma movimentação para as bases do PT, para mostrar que se trata de uma diplomacia ativa".
Na definição de Lafer, "uma diplomacia que buscou assento permanente no Conselho de Segurança da ONU e não conseguiu, buscou levar a bom termo a Rodada de Doha e não conseguiu, que buscou exercer uma influência construtiva e pacificadora na América do Sul e enfrenta uma América do Sul conturbada, tem poucos ativos para se dispor ao papel nesse momento".
DEU EM O GLOBO
NOVA YORK. O assessor especial da Presidência da República Marco Aurélio Garcia não apenas lê jornal como comenta o que lê. A respeito de minha coluna de ontem sobre a posição do governo brasileiro no conflito entre Israel e o Hamas, Marco Aurélio me mandou um e-mail - não é a primeira vez que o faz - que contém algumas revelações importantes, embora tenha também insanáveis contradições. Começa afirmando que minha tentativa "de estabelecer dicotomias na política externa brasileira, conduzida de forma qualificada pelo Itamaraty, não é original", para reafirmar sua polêmica posição: "Por que a morte de civis pelo Hamas é terrorismo e a morte de crianças pelas tropas de Israel não o é?".
O assessor especial da Presidência espanta-se que um comentário seu tenha sido apresentado como "posição do governo brasileiro", e apela: "Que fique claro: condeno todos os terrorismos".
Segundo ele, o Brasil tem uma só posição, "aquela definida pelo presidente Lula no Recife, em função da qual o ministro Amorim está desenvolvendo intensa atividade no Oriente Médio: lograr um cessar-fogo imediato e instaurar um subsequente processo de negociação com ampliada participação de países".
Para Marco Aurélio Garcia, "a condenação das ações do governo israelense é uma coisa, outra é a defesa intransigente do Estado de Israel, posição tradicional da diplomacia brasileira e minha em particular".
Para ele, "a nota do PT, cuja adjetivação não me parece adequada, deveria ter reiterado a orientação histórica do partido de defesa da existência do Estado de Israel".
O êxito da missão do chanceler Celso Amorim na busca de um acordo entre Israel e o Hamas na Faixa de Gaza não parece provável para Celso Lafer, chanceler no governo Fernando Henrique, que não vê a diplomacia brasileira em condições de exercer o papel tradicional de "terceiro" na solução pacífica de controvérsia, aquele que consegue lidar com aquelas coisas que as partes não conseguem resolver.
Na definição clássica, o Egito e a França estão prestando "bons ofícios" na negociação da crise, oferecendo um canal de comunicação para a retomada de negociações, "já que Israel tem dificuldade de conversar com o Hamas, que denega a sua existência, e o Hamas também não quer conversar com Israel, e o Egito, que tem interesse em encaminhar o assunto, oferece seus "bons ofícios"".
A mediação, indo além dos "bons ofícios", lembra Lafer, procura reconciliar pontos de vista e pode dar soluções de compromisso.
O "terceiro" pode ser tanto um Estado quanto uma organização internacional, que precisa de certas qualificações para atuar: "a imparcialidade, a objetividade, a autoridade e também recursos de poder"
Relembrando o historiador alemão Theodor Mommsen, o ex-chanceler acentua que "a autoridade é mais que um conselho e menos que um comando". Um bom exemplo seria a mediação do Papa João Paulo II, nos anos 1970 do século passado, no capítulo do Canal de Beagle entre o Chile e a Argentina: "O Papa não tinha poder mas tinha autoridade", comenta Lafer.
O Brasil teve um papel importante no encaminhamento da solução da disputa territorial entre o Peru e o Equador no governo Fernando Henrique, quando atuou como mediador.
E há o caso recente entre o Equador, a Colômbia e as Farc, no qual, na análise de Lafer, houve uma atuação construtiva da OEA e do Grupo do Rio, "mas também os que atrapalharam, como Hugo Chávez, seja pelo apoio dado ao Equador, seja pela simpatia pelas Farc".
Na nossa região, há um contencioso importante que é o das papeleiras do Uruguai, que provoca uma crise entre Argentina e Uruguai que está na Corte de Haia. O Uruguai garante que não provoca danos ambientais, que a Argentina acusa de estarem acontecendo.
Lafer lembra que o assunto está gerando "uma enorme dificuldade no âmbito do Mercosul, e é parte da oposição do Uruguai a Kirchner ser presidente da Unasul". Para Celso Lafer, "neste caso que diz respeito ao Mercosul, a dois vizinhos nossos em relação aos quais o Brasil deveria ter preocupações, há uma omissão nítida do governo".
Sendo assim, raciocina Lafer, "por que o chanceler Amorim está se animando com a possibilidade de ter um papel na negociação de Gaza? Não estamos vendo nem a Rússia, nem a China, nem a Índia fazendo alguma coisa, para dar exemplo de possíveis interlocutores nessa área".
Para ele, "quando o PT emite uma nota oficial falando sobre a causa palestina, o terrorismo de Estado, a contestação ao Estado de Israel, e vem o assessor do presidente da República Marco Aurélio Garcia, que está ligado ao PT, também qualificar a atitude de Israel de terrorismo de Estado, você elimina a possibilidade de o país ter um papel mais atuante".
O ex-chanceler brasileiro classifica essa tentativa do governo atual de "conversa mole para boi dormir do ponto de vista internacional, e, do ponto de vista interno, uma movimentação para as bases do PT, para mostrar que se trata de uma diplomacia ativa".
Na definição de Lafer, "uma diplomacia que buscou assento permanente no Conselho de Segurança da ONU e não conseguiu, buscou levar a bom termo a Rodada de Doha e não conseguiu, que buscou exercer uma influência construtiva e pacificadora na América do Sul e enfrenta uma América do Sul conturbada, tem poucos ativos para se dispor ao papel nesse momento".
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