segunda-feira, 30 de março de 2009

Legalidade, moralidade e eficiência

Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO

Em sua coluna no Valor, alguns dias atrás (20, 21 e 22 de março), Claudia Safatle comentava o parecer do procurador-geral do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União, Lucas Furtado, que serviu de fundamento à absolvição, pela Justiça Federal, de autoridades do governo Fernando Henrique Cardoso acusadas de improbidade administrativa no processo de privatização da Telebrás. O parecer destaca que a atuação estatal "não deve mais ser balizada apenas pelos critérios de legalidade, de moralidade e de impessoalidade", mas também "pelos princípios da eficiência e da economicidade", com a ênfase na "produtividade" e na "obtenção de resultados". O foco da coluna é a preocupação com as implicações para a renovação mais ou menos urgente de concessões em diversas áreas (setor elétrico, ferrovias, internet) de uma decisão afirmativa da Justiça baseada nessa nova leitura "eficiente" dos preceitos constitucionais relevantes - "nova" não obstante o fato de que a emenda constitucional 19/98 já inclui, no artigo 37, menção explícita à eficiência entre os princípios a serem obedecidos pela administração pública, em seus diversos níveis, ao lado dos de legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade.

Mesmo no nível técnico da administração como campo especial de estudo e reflexão, a questão da eficiência é objeto de grandes confusões, particularmente em suas relações com a burocracia. A tendência recente, em que Lucas Furtado se insere (tal como Bresser Pereira em sua passagem pelo Ministério da Reforma do Estado), tem sido a de contrapor uma administração "gerencial", vista como ágil e eficiente, à administração "burocrática" supostamente emperrada e estúpida, de acordo com o sentido que a expressão burocracia veio a adquirir coloquialmente e em que a adesão ritualista aos meios perde de vista os fins. Em certo sentido, é banal, naturalmente, a necessidade de lutar contra a distorção ritualista e buscar a eficiência. Mas o gerencialismo "reinventador do Estado" esquece que a burocracia é essencial à organização político-administrativa racional, ou à implantação do princípio "racional-legal" de que falava Max Weber.

Mais que isso, porém, o apego a normas legais universalistas e impessoais é condição indispensável da operação de um Estado democrático. Como tenho às vezes ressaltado aqui, se a eficiência supõe fins não problemáticos a serem alcançados através da manipulação mais expedita possível dos meios disponíveis, a própria definição da democracia envolve tomar como problemáticos os fins: a democracia reconhece que os fins são múltiplos e com frequência antagônicos, em correspondência com a multiplicidade dos atores sociopolíticos e de seus interesses, e que a grande tarefa do Estado democrático é justamente a de conciliar institucionalmente os fins diversos, num processo orientado por normas imparciais e que será por força, em alguma medida, moroso e complicado. E o desafio é o de como acomodar o desiderato banal de maximizar a eficiência nesse quadro de exigências democráticas - sem falar de que a referência à eficiência remete ela mesma à questão também complicada da acuidade na avaliação cognitiva ou intelectual da situação em que se trata de agir e das percepções variáveis quanto às relações entre meios e fins.

De qualquer modo, a Justiça é o instrumento por excelência a garantir o caráter democrático daquele processo perene de conciliação. Nessa perspectiva, é difícil ver o que poderemos ter a ganhar com alterações legais (como a da emenda 19/98) ou reinterpretações constitucionais que introduzam a possibilidade de jogar com considerações de moralidade e mesmo legalidade em nome de equívocas alegações de eficiência (apesar de formulações inevitavelmente matizadas que colocam a eficiência "ao lado" de outros princípios). Se tomamos a privatização que foi objeto da recente decisão judicial, por exemplo, os fatos conhecidos a respeito tornam patente a manipulação em que se empenharam as autoridades acusadas. Dizer isso não envolve necessariamente questionar a nobreza da motivação dessas autoridades: a manipulação que as gravações ilegais evidenciam é reconhecida mesmo por inequívocos simpatizantes políticos das pessoas agora absolvidas, com a alegação de que a manipulação "no limite da irresponsabilidade" era motivada pelo interesse de tornar mais competitiva a disputa pela concessão e, assim, pela atenção, realísticamente orientada, para o interesse público.

Mas, ainda que se preservem gradações, é fácil apontar o paralelismo dessa maneira de ver as coisas com certo maquiavelismo de araque em que a presumida justificação dos meios pelos fins, na cabeça de lideranças ideologicamente autocomplacentes, resultou há pouco no desastre do mensalão. E que fazer, por exemplo, com a questão de graus de eficiência? O fato de um grupo desqualificado pelos manipuladores ter obtido a concessão deveria ser tomado como indicando que seria necessário manipular mais? Se a Justiça pode rechaçar a acusação de improbidade em nome da busca de eficiência não deveria também ponderar a ineficiência relativa e talvez puni-la?

Não custa reforçar as preocupações que Claudia Safatle salienta quanto às consequências da situação legal produzida para os negócios futuros. Mas há, a meu ver, confusões e perigos maiores numa Justiça que ouviu cantar o galo da "eficiência" e se empenha desajeitadamente em equilibrá-la com legalidade e moralidade.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

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