segunda-feira, 30 de março de 2009

Uma interpretação racista da crise

Marco Antonio Rocha
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


De modo que, agora, já se sabe. Essa crise que prejudica tanta gente no mundo inteiro foi provocada por banqueiros brancos de olhos azuis. Então, a solução parece simples: basta prendê-los todos e a crise estará debelada.

Mas, peraí... segundo a revista Time, entre os 25 banqueiros, dirigentes das instituições que maior responsabilidade tiveram pela crise, havia dois negros: o ex-presidente da Merrill Lynch Stan O?Neal e o ex-presidente Frank Raines, da Fannie Mae. Esta, a maior carregadora de créditos podres que o governo americano tem de resgatar.

Então, é preciso prender alguns banqueiros negros.

Mas nosso presidente foi além, diante de um perplexo Gordon Brown, primeiro-ministro da Inglaterra, e, respondendo à pergunta de um jornalista sobre se sua declaração não tinha "um viés ideológico", saiu-se com essa estrambótica justificativa: "Como não conheço nenhum banqueiro negro..."

Isso, realmente, é de pasmar. Lula foi mais de uma vez à África, e eu sei, por ter visto nas várias assembleias gerais do Fundo Monetário Internacional (FMI) que cobri para este jornal, que as delegações africanas são integradas, muitas delas quase que totalmente, por banqueiros negros - cobertos, aliás, por aqueles elegantíssimos e belíssimos trajes de seus países. Então, ou Lula é muito distraído, ou nunca conheceu, de fato, nenhum banqueiro africano na África, ou os banqueiros africanos nunca deram bola para suas visitas, não compareceram às cerimônias nem foram apresentados ao visitante.

Mas, o pior, nesse surto de disparates, num homem que projetou uma imagem internacional de grande sensatez, não só pela forma com que conduziu a economia brasileira no seu governo, como pela oratória que usa nos palcos internacionais ao apresentar propostas que, embora de difícil realização, ninguém pode deixar de ouvir com seriedade, é justamente o efeito sobre a boa imagem de Lula como dirigente sério.

Na próxima quinta-feira reúne-se em Londres o G-20, o grupo dos 20 países mais ricos do mundo, do qual o Brasil faz parte. A reunião é para tentar encontrar alguma fórmula viável de exorcizar a assombração financeira que tomou conta do planeta, que deixa os banqueiros brancos ou negros de cabelo em pé, as empresas sem crédito, os governos sem liquidez (alguns, do Leste Europeu, como a Rumânia, já estão morrendo de sede e já tiveram que recorrer ao FMI) e os governantes feito baratas tontas. Lula estará lá. É até um convidado especial. Recebeu carta do secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, e de Gordon Brown, exortando-o a comparecer e apresentar propostas. Por quê? Porque é importante ouvir um dirigente que tirou seu país das armadilhas da dívida externa sem comprometer o seu crescimento econômico.

O mundo rico está interessado em ouvir Lula. Não mais por causa da sua história pessoal de menino pobre que chegou à Presidência da República. Mas por causa da aura de bom senso que conquistou, de afabilidade, de bom articulador político, de jeitoso no encaminhamento de coisas sérias e difíceis. No entanto, depois dessa patacoada em Brasília, à qual a imprensa internacional deu grande destaque, com que espírito será recepcionado? Mas, então, pensarão alguns, esse homem de quem esperamos boas sugestões acha mesmo que a culpa da crise é de "banqueiros brancos de olhos azuis"? Simples assim?

Instado a comentar o que Lula declarara, Gordon Brown disse que "não culparia indivíduos, particularmente". E nada mais acrescentou.

Desajeitadamente, o presidente Lula pode ter prejudicado sua credibilidade e desmontado o palanque internacional que a reunião do G-20 lhe propicia - ele que parece querer postular a liderança da Internacional Socialista depois de entregar o governo. Sem falar que poderia ter ocorrido algo horrível. Ainda bem que o local era uma entrevista coletiva no Palácio do Planalto, onde os jornalistas costumam ser polidos. Fosse em outro país, onde jornalistas até atiram sapatos em presidentes quando não gostam do que ouvem, Lula poderia ser constrangido por perguntas muito mais desafiadoras e desagradáveis do que "o senhor não acha que sua declaração tem um preconceito ideológico?" E até por algum repórter malcriado saindo da sala aos gritos de que não tinha tempo para ouvir bobagens.Uma cena destas, nas TVs, derruba a imagem de qualquer dignatário.

O problema maior é que Lula, obcecado em promover a ministra Dilma, parece se descuidar.

Deixa de atender à sua proverbial sensatez e atende ao alvitre de quem não tem nem um átimo do seu tirocínio - um ministro da Fazenda que diariamente enche os jornais com declarações que viram tema de piadas no cafezinho das entidades de classe e nos meios financeiros; um ministro da Justiça que diariamente nos brinda com conceitos jurisprudenciais ofensivos à inteligência até dos rábulas do passado, quanto mais dos melhores juristas do presente; procuradores, promotores, delegados e juízes que se empenham mais em tentar purificar o capitalismo do que em prender e condenar assaltantes e assassinos de fato, e cuja inépcia processualística acaba por fazer dos presumíveis bandidos de colarinho branco - inocentados nos tribunais superiores - apenas vítimas de perseguição política.

Nesse processo de insidiosa infiltração da desgovernança num governo prestigioso, pode estar sendo irremediavelmente minada a possibilidade de Lula firmar-se como estadista no plano internacional e de assim colocar o Brasil numa posição realmente condizente com sua estatura econômica e social. Mas, se ele próprio se entrega a uma oratória meramente chistosa, boa para arengar as massas, mas inútil para impressionar dignatários, acabará confirmando o que seus muitos adversários acham: que está apenas deslumbrado consigo mesmo.

*Marco Antonio Rocha é jornalista.

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