Luiz Sérgio Henriques
DEU EM GRAMSCI E O BRASIL
Antonio Gramsci esteve bem presente no debate brasileiro há cerca de 20 anos. As razões para tanto, esquematicamente, eram de duas ordens. Por um lado, o auge do eurocomunismo, trazendo a perspectiva de um comunismo democrático que socializasse não apenas a economia como também a política, devia atrair a atenção para o original político e teórico que estava na base de todo o projeto.
Também indiscutível, por outro lado, a demanda "interna" por idéias como as de Gramsci. Vivia-se o fim do período autoritário e era a hora do balanço dos anos de modernização conservadora a que o país fora submetido. Conceitos como "sociedade civil", "hegemonia", "bloco histórico", além de seu uso analítico, logo passaram a integrar o léxico da política brasileira. Claro, não haviam sido inventados por Gramsci, mas a marca gramsciana estava bem visível no modo como eram empregados.
Vieram os anos 80 e 90, e com eles um paradoxo. Gramsci quase desaparece como referência tanto do cenário acadêmico quanto do político. No Brasil, afora alguns trabalhos de mérito ligados aos nomes de Carlos Nelson Coutinho, Luiz Werneck Vianna ou Marco Aurélio Nogueira, Gramsci parece relegado ao esquecimento. E na Itália desaparece não só a perspectiva eurocomunista mas também o próprio partido de Gramsci. O PCI, como se sabe, tem hoje dois herdeiros: os democratas de esquerda do PDS e a Refundação Comunista, por sinal parceiros um tanto briguentos na atual coalizão de governo.
O paradoxo consiste no fato de que a maré que fez submergir Gramsci pode ser atribuída a todo um movimento que não seria descabido chamar de "gramscismo de direita". Em outras palavras, a direita neoconservadora, profundamente isolada nos anos do consenso keynesiano, preparou-se obstinadamente para uma longa "guerra de posições", agrupando-se em departamentos universitários ou em "think tanks", de resto muitíssimo bem financiados, nos quais pontificavam Hayek, Popper, Friedman, entre outras figuras de relevo. A solidão intelectual que no imediato pós- guerra, por exemplo, cercou o lançamento de uma obra como "O caminho da servidão", de Hayek, está em óbvio contraste com a hegemonia conquistada e hoje arrogantemente exercida por corifeus e discípulos do ultraliberalismo.
Nem de longe aqui sugerimos que a mudança verdadeiramente epocal de nossos dias foi decidida por finas escaramuças conceituais no Olimpo das idéias. O processo complicado que levou ao esgotamento da experiência soviética, à crise do compromisso social-democrata e à afirmação planetária do mercado capitalista -- aquele processo, evidentemente, nasce de mudanças no mundo da produção, de alterações no modo de acumulação, com a progressiva financeirização do capital e seu descolamento da vida produtiva. No entanto, o arsenal de idéias para explicar e gerir a nova situação estava substancialmente pronto, quando a partir de meados dos anos 70 os velhos equilíbrios entre classes sociais e forças políticas chegaram ao fim.
Gramsci, porém, resiste. Num plano imediato, não deixa de ser interessante que o próprio Fernando Henrique Cardoso volta e meia se refira ao pensador italiano como possível inspirador de uma esquerda moderna, que, a seu ver, faltaria ao país. A polêmica é boa: sem querer aprofundá-la, certamente haverá uma longa marcha -- nas instituições e na própria sociedade -- antes que amadureça uma esquerda plural, capaz de ser ao mesmo tempo, como dizia admiravelmente bem um lema caro ao velho PCI, força de luta e de governo. Mais duvidoso, contudo, é o verniz liberal-democrático, ou social-liberal, que nosso presidente parece querer passar num comunista como Gramsci.
O pensador italiano resiste ainda -- e muitíssimo bem -- a um teste muito apreciado na ciência social contemporânea: a quantidade de livros, ensaios e artigos sobre Gramsci não pára de crescer, mesmo em tempos tão bicudos. Em recente seminário na Universidade Federal de Juiz de Fora, Guido Liguori, redator-chefe da tradicional revista "Critica marxista", lembrava que a fortuna crítica de nosso autor, medida quantitativamente, tem poucos paralelos no mundo: trata-se de 12 mil títulos em cerca de 30 línguas. (Para os internautas, aliás, vale uma sugestão: a Bibliografia Gramsciana, organizada pelo historiador americano John Cammett, está em http://www.soc.qc.edu/gramsci)
E o dado qualitativo, decisivo, que suporta a idéia da nova vitalidade de Gramsci continua a ser o fato de que em sua obra, particularmente nos "Cadernos do cárcere", existem refinados instrumentos analíticos não só para a compreensão de sociedades complexas -- mas também para a indispensável tarefa de sua transformação.
DEU EM GRAMSCI E O BRASIL
Antonio Gramsci esteve bem presente no debate brasileiro há cerca de 20 anos. As razões para tanto, esquematicamente, eram de duas ordens. Por um lado, o auge do eurocomunismo, trazendo a perspectiva de um comunismo democrático que socializasse não apenas a economia como também a política, devia atrair a atenção para o original político e teórico que estava na base de todo o projeto.
Também indiscutível, por outro lado, a demanda "interna" por idéias como as de Gramsci. Vivia-se o fim do período autoritário e era a hora do balanço dos anos de modernização conservadora a que o país fora submetido. Conceitos como "sociedade civil", "hegemonia", "bloco histórico", além de seu uso analítico, logo passaram a integrar o léxico da política brasileira. Claro, não haviam sido inventados por Gramsci, mas a marca gramsciana estava bem visível no modo como eram empregados.
Vieram os anos 80 e 90, e com eles um paradoxo. Gramsci quase desaparece como referência tanto do cenário acadêmico quanto do político. No Brasil, afora alguns trabalhos de mérito ligados aos nomes de Carlos Nelson Coutinho, Luiz Werneck Vianna ou Marco Aurélio Nogueira, Gramsci parece relegado ao esquecimento. E na Itália desaparece não só a perspectiva eurocomunista mas também o próprio partido de Gramsci. O PCI, como se sabe, tem hoje dois herdeiros: os democratas de esquerda do PDS e a Refundação Comunista, por sinal parceiros um tanto briguentos na atual coalizão de governo.
O paradoxo consiste no fato de que a maré que fez submergir Gramsci pode ser atribuída a todo um movimento que não seria descabido chamar de "gramscismo de direita". Em outras palavras, a direita neoconservadora, profundamente isolada nos anos do consenso keynesiano, preparou-se obstinadamente para uma longa "guerra de posições", agrupando-se em departamentos universitários ou em "think tanks", de resto muitíssimo bem financiados, nos quais pontificavam Hayek, Popper, Friedman, entre outras figuras de relevo. A solidão intelectual que no imediato pós- guerra, por exemplo, cercou o lançamento de uma obra como "O caminho da servidão", de Hayek, está em óbvio contraste com a hegemonia conquistada e hoje arrogantemente exercida por corifeus e discípulos do ultraliberalismo.
Nem de longe aqui sugerimos que a mudança verdadeiramente epocal de nossos dias foi decidida por finas escaramuças conceituais no Olimpo das idéias. O processo complicado que levou ao esgotamento da experiência soviética, à crise do compromisso social-democrata e à afirmação planetária do mercado capitalista -- aquele processo, evidentemente, nasce de mudanças no mundo da produção, de alterações no modo de acumulação, com a progressiva financeirização do capital e seu descolamento da vida produtiva. No entanto, o arsenal de idéias para explicar e gerir a nova situação estava substancialmente pronto, quando a partir de meados dos anos 70 os velhos equilíbrios entre classes sociais e forças políticas chegaram ao fim.
Gramsci, porém, resiste. Num plano imediato, não deixa de ser interessante que o próprio Fernando Henrique Cardoso volta e meia se refira ao pensador italiano como possível inspirador de uma esquerda moderna, que, a seu ver, faltaria ao país. A polêmica é boa: sem querer aprofundá-la, certamente haverá uma longa marcha -- nas instituições e na própria sociedade -- antes que amadureça uma esquerda plural, capaz de ser ao mesmo tempo, como dizia admiravelmente bem um lema caro ao velho PCI, força de luta e de governo. Mais duvidoso, contudo, é o verniz liberal-democrático, ou social-liberal, que nosso presidente parece querer passar num comunista como Gramsci.
O pensador italiano resiste ainda -- e muitíssimo bem -- a um teste muito apreciado na ciência social contemporânea: a quantidade de livros, ensaios e artigos sobre Gramsci não pára de crescer, mesmo em tempos tão bicudos. Em recente seminário na Universidade Federal de Juiz de Fora, Guido Liguori, redator-chefe da tradicional revista "Critica marxista", lembrava que a fortuna crítica de nosso autor, medida quantitativamente, tem poucos paralelos no mundo: trata-se de 12 mil títulos em cerca de 30 línguas. (Para os internautas, aliás, vale uma sugestão: a Bibliografia Gramsciana, organizada pelo historiador americano John Cammett, está em http://www.soc.qc.edu/gramsci)
E o dado qualitativo, decisivo, que suporta a idéia da nova vitalidade de Gramsci continua a ser o fato de que em sua obra, particularmente nos "Cadernos do cárcere", existem refinados instrumentos analíticos não só para a compreensão de sociedades complexas -- mas também para a indispensável tarefa de sua transformação.
Luiz Sérgio Henriques é o editor de Gramsci e o Brasil.
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