Ubiratan Brasil
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / Caderno 2
Segundo o crítico Antonio Candido, o fazendeiro de Araraquara não aceitava as inovações literárias propostas pelo escritor
O crítico Antonio Candido ainda guarda recordações afetivas de Pio Lourenço Corrêa, fazendeiro que se tornou o principal interlocutor de Mário de Andrade - e também seu, mantendo um contato constante de 1944 até o ano da morte de Corrêa, 1957. "Foi um dos homens mais inteligentes e originais que conheci", comenta ele, em entrevista ao Estado, realizada por e-mail. "Apesar de ser 43 anos mais moço, fui amigo dele."
Na introdução escrita para Pio & Mário, em que revela traços biográficos do fazendeiro, o crítico o descreve como um homem pequeno, magro, de feições corretas, voz grave e bem empostada, a serviço de uma dicção perfeita. "Possuía grande senso de humor, se divertia com facilidade e era conservador incomparável", comenta.
Candido acompanhou o trabalho de sua mulher, Gilda de Mello e Souza, na reunião de todo material relativo a Corrêa, que era seu tio-avô paterno. A intenção da pesquisadora era escrever um estudo detalhado sobre o fazendeiro. A morte, no entanto, em 2005, a impediu de dar a redação final.
Quem foi Pio Lourenço Corrêa, com o qual Mário de Andrade manteve a mais longa troca de cartas?É bom esclarecer que não era tio de Mário de Andrade, embora este o trate assim o tempo todo na correspondência. Mário e os irmãos se acostumaram a este tratamento por imitação de um sobrinho de Pio Lourenço, com o qual conviveram em meninos. Mas era primo de sua mulher, Zulmira de Moraes Rocha. Pio Lourenço foi fazendeiro eficiente e homem muito culto, dedicado sobretudo aos estudos linguísticos. Como era um pouco maníaco, acabou tendo como preocupação central demonstrar sistematicamente que o nome da sua cidade significa "morada do sol", ou "cova onde nasce o sol", não "cova das araras". Neste sentido publicou um livro interessante: Monografia da Palavra Araraquara. Publicou também muitas dezenas de artigos sobre questões de linguística. Era extremamente conservador e, como se dizia, "sistemático", chegando a elaborar um modo de viver peculiar em sua chácara Sapucaia. Conhecia bem quatro línguas estrangeiras, pronunciando-as com perfeição, e tinha uma biblioteca de qualidade, que compreendia inclusive um setor de ciências naturais, das quais era amador.
Apesar de severo e autoritário, era sociável, hospitaleiro e tinha uma conversa encantadora, marcada pelo senso de humor. Era notável a firmeza inflexível do seu caráter. Foi um dos homens mais inteligentes e originais que conheci, num convívio que durou até a sua morte em 1957, porque, apesar de ser 43 anos mais moço, fui amigo dele.
Como as cartas de Mário a Pio abrem caminho para a compreensão das angústias do escritor?
Na introdução deste livro, Gilda de Mello e Souza sugere, a meu ver com razão, que as relações de ambos tiveram certo caráter de apoio do mais velho ao mais moço. Muitas delas mostram Mário inquieto e deprimido, despertando no amigo uma atitude de quem conforta e estimula. É provável que esta tenha sido a base da grande amizade deles. Gilda observa também que o pai de Mário morreu num momento em que as relações com o filho não estavam afinadas, o que deve ter gerado algum remorso neste. Então, Pio Lourenço avultou como amparo e abrigo, tanto mais quanto Mário via nele, segundo diz numa carta, semelhança com seu pai: a mesma severidade intransigente, a mesma retidão sem quebra, a mesma disciplina. Pio Lourenço, do seu lado, foi amigo do pai de Mário, Carlos Augusto de Andrade, do qual era 26 anos mais moço, e tinha por ele não apenas admiração, mas veneração. Lembro que invocava o seu nome com muita frequência a propósito de vários assuntos.
Houve influência de Pio sobre Macunaíma, escrito na sua chácara?
A resposta é negativa. Mário escreveu o livro na chácara porque o impulso ocorreu lá. O quarto do casal e o quarto de hóspedes ficavam lado a lado, com portas contíguas dando para um pequeno vestíbulo. Estas portas tinham a parte superior de vidro fosco rugoso, de modo que era possível saber, de um, se a luz do outro estava acesa. Dona Zulmira queria que o primo dormisse cedo para descansar; ele, então, a fim de não alertá-la, ia para o grande banheiro privativo do quarto, fechava a porta e escrevia até quando quisesse, numa pequena mesa encimada por um espelho oval. Foi assim que redigiu de jato o famoso livro, mas retocou-o em seguida, inclusive na fazenda do irmão de dona Zulmira, Cândido de Moraes Rocha, onde contava episódios aos filhos pequenos deste. A mais velha, Maria Elisa, que tinha uns 11 ou 12 anos, foi quem sugeriu que Venceslau Pietro Pietra morresse afogado num tacho de macarronada. Pio Lourenço discordava radicalmente do modernismo e da escrita de Mário, mas noutros setores podiam trocar ideias: fala popular, ditos, tradições paulistas, problemas de linguística. Numa carta vemos que gostou de Os Filhos da Candinha, cuja escrita lhe pareceu mais “normal”. A correspondência mostra que Mário discutia muita coisa com o amigo, do qual diferia intelectualmente. Mas se admiravam e eram unidos por um grande afeto.
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / Caderno 2
Segundo o crítico Antonio Candido, o fazendeiro de Araraquara não aceitava as inovações literárias propostas pelo escritor
O crítico Antonio Candido ainda guarda recordações afetivas de Pio Lourenço Corrêa, fazendeiro que se tornou o principal interlocutor de Mário de Andrade - e também seu, mantendo um contato constante de 1944 até o ano da morte de Corrêa, 1957. "Foi um dos homens mais inteligentes e originais que conheci", comenta ele, em entrevista ao Estado, realizada por e-mail. "Apesar de ser 43 anos mais moço, fui amigo dele."
Na introdução escrita para Pio & Mário, em que revela traços biográficos do fazendeiro, o crítico o descreve como um homem pequeno, magro, de feições corretas, voz grave e bem empostada, a serviço de uma dicção perfeita. "Possuía grande senso de humor, se divertia com facilidade e era conservador incomparável", comenta.
Candido acompanhou o trabalho de sua mulher, Gilda de Mello e Souza, na reunião de todo material relativo a Corrêa, que era seu tio-avô paterno. A intenção da pesquisadora era escrever um estudo detalhado sobre o fazendeiro. A morte, no entanto, em 2005, a impediu de dar a redação final.
Quem foi Pio Lourenço Corrêa, com o qual Mário de Andrade manteve a mais longa troca de cartas?É bom esclarecer que não era tio de Mário de Andrade, embora este o trate assim o tempo todo na correspondência. Mário e os irmãos se acostumaram a este tratamento por imitação de um sobrinho de Pio Lourenço, com o qual conviveram em meninos. Mas era primo de sua mulher, Zulmira de Moraes Rocha. Pio Lourenço foi fazendeiro eficiente e homem muito culto, dedicado sobretudo aos estudos linguísticos. Como era um pouco maníaco, acabou tendo como preocupação central demonstrar sistematicamente que o nome da sua cidade significa "morada do sol", ou "cova onde nasce o sol", não "cova das araras". Neste sentido publicou um livro interessante: Monografia da Palavra Araraquara. Publicou também muitas dezenas de artigos sobre questões de linguística. Era extremamente conservador e, como se dizia, "sistemático", chegando a elaborar um modo de viver peculiar em sua chácara Sapucaia. Conhecia bem quatro línguas estrangeiras, pronunciando-as com perfeição, e tinha uma biblioteca de qualidade, que compreendia inclusive um setor de ciências naturais, das quais era amador.
Apesar de severo e autoritário, era sociável, hospitaleiro e tinha uma conversa encantadora, marcada pelo senso de humor. Era notável a firmeza inflexível do seu caráter. Foi um dos homens mais inteligentes e originais que conheci, num convívio que durou até a sua morte em 1957, porque, apesar de ser 43 anos mais moço, fui amigo dele.
Como as cartas de Mário a Pio abrem caminho para a compreensão das angústias do escritor?
Na introdução deste livro, Gilda de Mello e Souza sugere, a meu ver com razão, que as relações de ambos tiveram certo caráter de apoio do mais velho ao mais moço. Muitas delas mostram Mário inquieto e deprimido, despertando no amigo uma atitude de quem conforta e estimula. É provável que esta tenha sido a base da grande amizade deles. Gilda observa também que o pai de Mário morreu num momento em que as relações com o filho não estavam afinadas, o que deve ter gerado algum remorso neste. Então, Pio Lourenço avultou como amparo e abrigo, tanto mais quanto Mário via nele, segundo diz numa carta, semelhança com seu pai: a mesma severidade intransigente, a mesma retidão sem quebra, a mesma disciplina. Pio Lourenço, do seu lado, foi amigo do pai de Mário, Carlos Augusto de Andrade, do qual era 26 anos mais moço, e tinha por ele não apenas admiração, mas veneração. Lembro que invocava o seu nome com muita frequência a propósito de vários assuntos.
Houve influência de Pio sobre Macunaíma, escrito na sua chácara?
A resposta é negativa. Mário escreveu o livro na chácara porque o impulso ocorreu lá. O quarto do casal e o quarto de hóspedes ficavam lado a lado, com portas contíguas dando para um pequeno vestíbulo. Estas portas tinham a parte superior de vidro fosco rugoso, de modo que era possível saber, de um, se a luz do outro estava acesa. Dona Zulmira queria que o primo dormisse cedo para descansar; ele, então, a fim de não alertá-la, ia para o grande banheiro privativo do quarto, fechava a porta e escrevia até quando quisesse, numa pequena mesa encimada por um espelho oval. Foi assim que redigiu de jato o famoso livro, mas retocou-o em seguida, inclusive na fazenda do irmão de dona Zulmira, Cândido de Moraes Rocha, onde contava episódios aos filhos pequenos deste. A mais velha, Maria Elisa, que tinha uns 11 ou 12 anos, foi quem sugeriu que Venceslau Pietro Pietra morresse afogado num tacho de macarronada. Pio Lourenço discordava radicalmente do modernismo e da escrita de Mário, mas noutros setores podiam trocar ideias: fala popular, ditos, tradições paulistas, problemas de linguística. Numa carta vemos que gostou de Os Filhos da Candinha, cuja escrita lhe pareceu mais “normal”. A correspondência mostra que Mário discutia muita coisa com o amigo, do qual diferia intelectualmente. Mas se admiravam e eram unidos por um grande afeto.
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