Rubens Ricupero
DEU NA FOLHA DE S. PAULO
O Real não é propriedade nem bandeira de ninguém, mas uma conquista de todo o povo brasileiro
O DIA mais dramático foi a véspera da introdução do Real. Quinze anos depois, fora do país, relembro a tensão daquelas horas. Os artífices do plano corriam contra o relógio a fim de completar a complexa medida provisória para o "Diário Oficial" daquela noite. Enquanto isso, gente poderosa dentro e fora do governo montava ofensiva para desfigurar tudo o que vinha sendo construído.
Chegamos a milímetros da catástrofe. Não fosse o apoio do presidente Itamar Franco, o destino do Real e do Brasil teria sido outro. Como nada transpirou do perigo, a impressão que ficou foi a do desdobramento de um plano automático, o deslizar das águas de um rio tranquilo. Quem viveu aquelas horas de angústia sabe que não foi bem assim. Mais de uma vez, teria bastado uma decisão infeliz para pôr tudo a perder.
A contagem regressiva começara em abril quando sucedi Fernando Henrique Cardoso.
Logo descobri que não havia data prevista para o lançamento da moeda. Nem existia consenso sobre o tempo necessário para fazê-lo com segurança. Achavam alguns que se precisaria ao menos de um ano para criar as condições indispensáveis.
Como não se podia esperar tanto, fixou-se a data para a sexta-feira de 1º de julho, três meses depois, o mínimo prazo possível. O tempo foi usado para fornecer à população informação abundante e honesta sobre a moeda e as condições para conquistar a estabilidade perdida havia mais de uma geração.
No dia D as pessoas estavam prontas e sentia-se no ar a excitação alegre dos domingos de eleição. O lançamento simbólico ocorreu na agência da Caixa no Planalto, quando o presidente, acompanhado por este criado, trocou algum dinheiro antigo pelo novo. De lá saí para percorrer agências bancárias e em toda parte encontrei alegria e esperança. Quando me disseram que em todo o país a troca de moeda se fazia de modo ordeiro e sem pânico, não sendo preciso abrir os bancos no domingo, senti que a moeda tinha pegado e a batalha estava ganha.
Quis contar essa história para exprimir o que, ao longo de todo esse tempo, sempre foi minha convicção: o Real deu certo porque a estabilidade era o desejo profundo do povo brasileiro. Perdera-se a memória de preços estáveis, mas, sem saber como, as pessoas queriam voltar ao normal.
O presidente Itamar acreditou que era possível e persistiu no esforço até encontrar em FHC e seus colaboradores os atores capazes de converter o sonho em realidade.
Mesmo setores políticos retardatários como o PT acabaram por mudar porque não podiam se isolar do povo. O presidente Lula teve o mérito de ser o agente da mudança do seu partido e consolidou no governo a estabilidade ameaçada, aproveitando condições mais propícias para expandir e melhorar o consumo de massas.
Com isso, chegamos ao amadurecimento que invejávamos no Chile: hoje nenhum setor importante questiona a estabilidade como patamar a partir do qual deve ser edificado um projeto nacional de prosperidade e justiça.
Obra coletiva de três presidentes, de vários ministros, de presidentes do Banco Central e de economistas competentes, o Real deixou de ser fator de divisão. Não é propriedade nem bandeira de ninguém porque representa uma conquista que pertence a todo o povo brasileiro. No momento em que a corrupção substituiu a hiperinflação como ameaça mortal, sirva o exemplo para crermos que, se quisermos, também esse câncer poderá ser extirpado.
Rubens Ricupero, 72, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.
DEU NA FOLHA DE S. PAULO
O Real não é propriedade nem bandeira de ninguém, mas uma conquista de todo o povo brasileiro
O DIA mais dramático foi a véspera da introdução do Real. Quinze anos depois, fora do país, relembro a tensão daquelas horas. Os artífices do plano corriam contra o relógio a fim de completar a complexa medida provisória para o "Diário Oficial" daquela noite. Enquanto isso, gente poderosa dentro e fora do governo montava ofensiva para desfigurar tudo o que vinha sendo construído.
Chegamos a milímetros da catástrofe. Não fosse o apoio do presidente Itamar Franco, o destino do Real e do Brasil teria sido outro. Como nada transpirou do perigo, a impressão que ficou foi a do desdobramento de um plano automático, o deslizar das águas de um rio tranquilo. Quem viveu aquelas horas de angústia sabe que não foi bem assim. Mais de uma vez, teria bastado uma decisão infeliz para pôr tudo a perder.
A contagem regressiva começara em abril quando sucedi Fernando Henrique Cardoso.
Logo descobri que não havia data prevista para o lançamento da moeda. Nem existia consenso sobre o tempo necessário para fazê-lo com segurança. Achavam alguns que se precisaria ao menos de um ano para criar as condições indispensáveis.
Como não se podia esperar tanto, fixou-se a data para a sexta-feira de 1º de julho, três meses depois, o mínimo prazo possível. O tempo foi usado para fornecer à população informação abundante e honesta sobre a moeda e as condições para conquistar a estabilidade perdida havia mais de uma geração.
No dia D as pessoas estavam prontas e sentia-se no ar a excitação alegre dos domingos de eleição. O lançamento simbólico ocorreu na agência da Caixa no Planalto, quando o presidente, acompanhado por este criado, trocou algum dinheiro antigo pelo novo. De lá saí para percorrer agências bancárias e em toda parte encontrei alegria e esperança. Quando me disseram que em todo o país a troca de moeda se fazia de modo ordeiro e sem pânico, não sendo preciso abrir os bancos no domingo, senti que a moeda tinha pegado e a batalha estava ganha.
Quis contar essa história para exprimir o que, ao longo de todo esse tempo, sempre foi minha convicção: o Real deu certo porque a estabilidade era o desejo profundo do povo brasileiro. Perdera-se a memória de preços estáveis, mas, sem saber como, as pessoas queriam voltar ao normal.
O presidente Itamar acreditou que era possível e persistiu no esforço até encontrar em FHC e seus colaboradores os atores capazes de converter o sonho em realidade.
Mesmo setores políticos retardatários como o PT acabaram por mudar porque não podiam se isolar do povo. O presidente Lula teve o mérito de ser o agente da mudança do seu partido e consolidou no governo a estabilidade ameaçada, aproveitando condições mais propícias para expandir e melhorar o consumo de massas.
Com isso, chegamos ao amadurecimento que invejávamos no Chile: hoje nenhum setor importante questiona a estabilidade como patamar a partir do qual deve ser edificado um projeto nacional de prosperidade e justiça.
Obra coletiva de três presidentes, de vários ministros, de presidentes do Banco Central e de economistas competentes, o Real deixou de ser fator de divisão. Não é propriedade nem bandeira de ninguém porque representa uma conquista que pertence a todo o povo brasileiro. No momento em que a corrupção substituiu a hiperinflação como ameaça mortal, sirva o exemplo para crermos que, se quisermos, também esse câncer poderá ser extirpado.
Rubens Ricupero, 72, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.
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