No dia 27, em sua coluna no Valor, Maria Inês Nassif apontava com acerto um aspecto que merece atenção da cena política brasileira atual: o fato de que o descrédito dos políticos e de várias faces de nossa dinâmica institucional se dá sem que seja comprometida a estabilidade política. De fato, especialmente na perspectiva das muitas turbulências que, em tempos ainda recentes, culminaram na longa ditadura militar de 1964, é notável, e notavelmente positivo, que os problemas com que se liga aquele descrédito perante a santificada e problemática "opinião pública" sejam processados institucionalmente, sem mais, e que as dificuldades enfrentadas possam elas mesmas ser vistas, assim, como um fator de fortalecimento institucional. Ainda no dia seguinte à publicação da coluna de Nassif, vimos o STF a decidir sobre a denúncia de Antonio Palocci e outros no caso Francenildo com base em matizes na interpretação das leis pertinentes - seguramente para o desagrado das certezas rombudas de parte substancial da opinião pública e seus pregoeiros - e encerrar o assunto, não obstante os desdobramentos politicamente relevantes por possibilitar-se o ressurgimento público desembaraçado do ex-ministro .
Algumas reflexões são sugeridas pelo confronto desse aspecto de nossa atualidade política com o momento vivido pelos Estados Unidos. O que se vê nos EUA, com a intensificação da "guerra cultural" e a feição que adquire com a eleição de Barack Obama e as resistências suscitadas, pode provavelmente ser descrito como a reabertura do problema "constitucional", no sentido em que tenho usado aqui a expressão, indicando o desafio de acomodação institucional estável dos conflitos sociais básicos. Assim, vemos a reforma da saúde, setor em que se tem evidência gritante das deficiências da incorporação social no país, erigida em pedra de toque ideológica em que se afere a fidelidade patriótica ou a traição "socialista" dos valores americanos, enquanto pesados interesses econômico-financeiros se mobilizam contra. Vemos, de maneira talvez mais reveladora pelos traços que exibe, a incitação à violência: em artigo de 22 de agosto no "New York Times" ("The Guns of August"), Frank Rich volta com apreensão crescente ao tema para advertir contra o "murmúrio efervescente de violência" na política americana, em que a ação dos malucos armados (que se têm feito presentes, aos bandos, até em eventos públicos, sem falar de efetivos assassinatos praticados, como o do guarda do Museu do Holocausto em Washington por um neonazista ligado ao movimento "birther" contra Obama, ou o do médico executado por um fanático antiaborto no Kansas) encontra agora inédito apoio aberto nas manifestações de lideranças do Partido Republicano, como o senador Tom Coburn ou o congressista Phil Gingrey, sem falar da campanha presidencial do ano passado e da atuação de Sarah Palin. Apesar da conexão menos direta com a dimensão social do problema "constitucional" tal como considerado aqui, também os descaminhos legais da "guerra ao terror" de Bush são certamente relevantes na criação do clima geral sombrio.
É evidente o sentido em que o fato de "reabrir-se" o problema constitucional merece leitura positiva. Esse é o sentido em que a eleição de Obama é em si mesma um avanço na incorporação sociopolítica de minorias submetidas longamente a condições de inferioridade, e é apenas um desdobramento natural que ela se traduza em políticas de governo incorporadoras em que certos conflitos se agudizam. O confronto com o Brasil permite salientar tanto contrastes quanto paralelos relevantes.
Para começar, cabe ver um Lula presidente (ou uma Marina Silva como potencial candidata relevante à Presidência) como fenômeno de relevância "constitucional" análoga por aspectos importantes, e o aguçamento "udenista", como diz Maria Inês Nassif, do enfrentamento governo-oposição no período recente também comporta analogia com a polarização intensificada nos EUA. Nossa condição atual, porém, à parte o fato de carecermos da peculiar tradição individualista em que se cultua o acesso às armas e proliferam os malucos armados, redunda em recuo - e, ao que parece, aprendizado - em relação a momentos, apenas um pouco menos recentes, de mais agudos enfrentamentos "constitucionais", em que as instituições políticas se viram radicalmente comprometidas e houve o recurso aberto e desregrado à violência política.
Não há por que presumir que venhamos a ter também nos Estados Unidos a violência política que vá além dos malucos armados e alcance mais fortemente o plano institucional. Contudo, é preocupante que as vacilações e os recuos produzidos na postura do governo Obama pelo empenho de mitigar o enfrentamento e a polarização (vacilações que se mostram nas propostas quanto à reforma da saúde, ou nas medidas destinadas a superar a crise econômica) alcancem até os desmandos da "guerra ao terror" e o abandono que revelam do apego à ideia de direitos civis ou humanos, mais comezinhos e consensuais do que a de direitos sociais. Pois isso redunda em corroborar a conduta pela qual um Estado há muito consolidado em seus fundamentos liberais decide por de lado os princípios legais que o definem como tal e agir como o bandido que comete crimes supostamente políticos, em que a violência arbitrária seria justificada pela suposta nobreza da causa - o que, note-se, arrisca legitimar tortamente as disposições dos malucos armados. A anistia assim concedida implicitamente aos torturadores e criminosos seria mesmo menos defensável do que a dos torturadores do regime de 1964 que presentemente se discute entre nós. Pois, à diferença de Bush e seus agentes, estes operaram em circunstâncias em que uma ditadura indisfarçada atropelara radicalmente o quadro institucional-legal e os mantinha inapelavelmente sob as ordens dos ditadores.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais.
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