segunda-feira, 31 de agosto de 2009

A conjuntura, Brasil e Estados Unidos

Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO


No dia 27, em sua coluna no Valor, Maria Inês Nassif apontava com acerto um aspecto que merece atenção da cena política brasileira atual: o fato de que o descrédito dos políticos e de várias faces de nossa dinâmica institucional se dá sem que seja comprometida a estabilidade política. De fato, especialmente na perspectiva das muitas turbulências que, em tempos ainda recentes, culminaram na longa ditadura militar de 1964, é notável, e notavelmente positivo, que os problemas com que se liga aquele descrédito perante a santificada e problemática "opinião pública" sejam processados institucionalmente, sem mais, e que as dificuldades enfrentadas possam elas mesmas ser vistas, assim, como um fator de fortalecimento institucional. Ainda no dia seguinte à publicação da coluna de Nassif, vimos o STF a decidir sobre a denúncia de Antonio Palocci e outros no caso Francenildo com base em matizes na interpretação das leis pertinentes - seguramente para o desagrado das certezas rombudas de parte substancial da opinião pública e seus pregoeiros - e encerrar o assunto, não obstante os desdobramentos politicamente relevantes por possibilitar-se o ressurgimento público desembaraçado do ex-ministro .

Algumas reflexões são sugeridas pelo confronto desse aspecto de nossa atualidade política com o momento vivido pelos Estados Unidos. O que se vê nos EUA, com a intensificação da "guerra cultural" e a feição que adquire com a eleição de Barack Obama e as resistências suscitadas, pode provavelmente ser descrito como a reabertura do problema "constitucional", no sentido em que tenho usado aqui a expressão, indicando o desafio de acomodação institucional estável dos conflitos sociais básicos. Assim, vemos a reforma da saúde, setor em que se tem evidência gritante das deficiências da incorporação social no país, erigida em pedra de toque ideológica em que se afere a fidelidade patriótica ou a traição "socialista" dos valores americanos, enquanto pesados interesses econômico-financeiros se mobilizam contra. Vemos, de maneira talvez mais reveladora pelos traços que exibe, a incitação à violência: em artigo de 22 de agosto no "New York Times" ("The Guns of August"), Frank Rich volta com apreensão crescente ao tema para advertir contra o "murmúrio efervescente de violência" na política americana, em que a ação dos malucos armados (que se têm feito presentes, aos bandos, até em eventos públicos, sem falar de efetivos assassinatos praticados, como o do guarda do Museu do Holocausto em Washington por um neonazista ligado ao movimento "birther" contra Obama, ou o do médico executado por um fanático antiaborto no Kansas) encontra agora inédito apoio aberto nas manifestações de lideranças do Partido Republicano, como o senador Tom Coburn ou o congressista Phil Gingrey, sem falar da campanha presidencial do ano passado e da atuação de Sarah Palin. Apesar da conexão menos direta com a dimensão social do problema "constitucional" tal como considerado aqui, também os descaminhos legais da "guerra ao terror" de Bush são certamente relevantes na criação do clima geral sombrio.

É evidente o sentido em que o fato de "reabrir-se" o problema constitucional merece leitura positiva. Esse é o sentido em que a eleição de Obama é em si mesma um avanço na incorporação sociopolítica de minorias submetidas longamente a condições de inferioridade, e é apenas um desdobramento natural que ela se traduza em políticas de governo incorporadoras em que certos conflitos se agudizam. O confronto com o Brasil permite salientar tanto contrastes quanto paralelos relevantes.

Para começar, cabe ver um Lula presidente (ou uma Marina Silva como potencial candidata relevante à Presidência) como fenômeno de relevância "constitucional" análoga por aspectos importantes, e o aguçamento "udenista", como diz Maria Inês Nassif, do enfrentamento governo-oposição no período recente também comporta analogia com a polarização intensificada nos EUA. Nossa condição atual, porém, à parte o fato de carecermos da peculiar tradição individualista em que se cultua o acesso às armas e proliferam os malucos armados, redunda em recuo - e, ao que parece, aprendizado - em relação a momentos, apenas um pouco menos recentes, de mais agudos enfrentamentos "constitucionais", em que as instituições políticas se viram radicalmente comprometidas e houve o recurso aberto e desregrado à violência política.

Não há por que presumir que venhamos a ter também nos Estados Unidos a violência política que vá além dos malucos armados e alcance mais fortemente o plano institucional. Contudo, é preocupante que as vacilações e os recuos produzidos na postura do governo Obama pelo empenho de mitigar o enfrentamento e a polarização (vacilações que se mostram nas propostas quanto à reforma da saúde, ou nas medidas destinadas a superar a crise econômica) alcancem até os desmandos da "guerra ao terror" e o abandono que revelam do apego à ideia de direitos civis ou humanos, mais comezinhos e consensuais do que a de direitos sociais. Pois isso redunda em corroborar a conduta pela qual um Estado há muito consolidado em seus fundamentos liberais decide por de lado os princípios legais que o definem como tal e agir como o bandido que comete crimes supostamente políticos, em que a violência arbitrária seria justificada pela suposta nobreza da causa - o que, note-se, arrisca legitimar tortamente as disposições dos malucos armados. A anistia assim concedida implicitamente aos torturadores e criminosos seria mesmo menos defensável do que a dos torturadores do regime de 1964 que presentemente se discute entre nós. Pois, à diferença de Bush e seus agentes, estes operaram em circunstâncias em que uma ditadura indisfarçada atropelara radicalmente o quadro institucional-legal e os mantinha inapelavelmente sob as ordens dos ditadores.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais.

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