quinta-feira, 27 de agosto de 2009

A notícia boa é a estabilidade política

Maria Inês Nassif
DEU NO VALOR ECONÔMICO


São fatos que se contradizem e contradições de difícil leitura: na política aparente, os partidos em geral vivem processo de grande desgaste político; os políticos, em especial aqueles com mandato parlamentar, estão num momento limite de descrédito; as instituições parlamentares pegaram a lanterninha na lista de preferências e de confiança dos cidadãos; as instituições com poder fiscalizatório - polícias, Ministério Público, Receita Federal - passaram a ser vistas como órgãos de controle por excelência das instituições democráticas; o Judiciário consegue partilhar da onda de popularidade das polícias quando assume seu lado punitivo - do político, do sonegador e de todos aqueles que direta ou indiretamente parecem desfrutar de privilégios associados ao poder público -, mais do que quando garante direitos. Se esse é um quadro de descrédito no que diz respeito ao Legislativo e aos partidos políticos, e de ascensão à preferência popular de instituições públicas com poder de fiscalização e controle "profissionalizados" fora do universo partidário, é um momento também de grande estabilidade política, por contraditório que isso possa parecer num país cujos "controles" foram historicamente transferidos pelas elites aos militares.

Não foram poucas, nem tiveram intensidade reduzida, as crises originárias do Congresso e dos partidos desde a redemocratização, em 1985. Excetuado o período da eleição de 2002, quando a disputa político-eleitoral intensa atuou sobre uma frágil realidade macroeconômica, essas crises ficaram isoladas no mundo político, com pouca repercussão na economia e pouquíssima contaminação na base social dos governos. Esse foi um fenômeno que valeu para o presidente José Sarney do Plano Cruzado; para o governo Itamar Franco, do início do Plano Real; e para o governo Fernando Henrique Cardoso da continuação do Plano Real. Vale, agora, para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva do Bolsa Família. Isso não é pouco para um país com vocação para soluções autoritárias.

O presidente Lula diferencia-se dos seus antecessores porque tem uma popularidade que decorre com maior clareza da opção política por uma faixa de eleitores de baixa renda. Isso tornou-o avalista de seus próprios governos: se administra uma situação institucional mais complicada do que a de Itamar e a de FHC - que viveram um período de grande convergência ideológica dos partidos de centro e de direita, o que isolou a oposição udenista do PT -, por outro lado tem conseguido com relativa facilidade isolar na área político-institucional as crises de natureza partidária e congressual - que decorrem de uma atuação de conteúdo igualmente udenista da oposição a ele. Seu governo não é diferente ao de seus antecessores, todavia, quando agrega a isso soluções de compromisso com o grande capital e com parcelas dos setores produtivos, em especial o agronegócio. Assim como seus antecessores, definiu uma faixa de estabilidade externa ao Legislativo que tem mantido seu governo com a cabeça de fora de crises políticas com origem em uma oposição udenista cuja área exclusiva de militância é o Legislativo (ou, nos anos eleitorais, um espaço político que mistura campanha e oposição legislativa).

Nos governos anteriores, crises econômicas e financeiras persistentes mais contaminaram o cenário político do que o contrário - em períodos de planos econômicos que estabilizavam a inflação, os governos mantinham alta popularidade e seus titulares eram os depositários da confiança popular; nas curvas descendentes da economia, a impopularidade do chefe do Executivo era transferida para o candidato de seu partido. Nem Sarney, nem Fernando Henrique conseguiram fazer seus sucessores; FHC foi eleito, e era candidato do presidente Itamar Franco, na carona da popularidade do Plano Real, do qual, aliás, foi o formulador. Esse governo desfruta do maior período de estabilidade econômica dos governos pós-ditadura, o que tem permitido a ele não apenas isolar as crises de natureza legislativa, mas logicamente não se deixar contaminar por crises de natureza econômico-financeira.

É uma conjunção rara, mas com potencial de agregar elementos muito menos favoráveis. O apoio do PMDB foi um importante fator de estabilidade dos governos FHC porque era contrabalançado pelo PFL, que tinha posição ideológica não conflitiva, mas desfrutava de um grau de coesão maior, o que não permitia ao PMDB valorizar-se excessivamente na aliança governamental. A coesão ideológica do bloco governista e um grau de defecção pequeno do PFL nas votações do Congresso limitaram o poder de chantagem do PMDB. A aliança de Lula com o PMDB não tem esse contraponto. É uma definição ideológica forçada dizer que o PMDB é um partido de centro que, aliado a um partido de autodesignado de esquerda, o PT, matematicamente leva o governo a uma posição de centro-esquerda. Isolado eleitoralmente no interior do país, o partido sustenta-se cada vez mais em lideranças tradicionais e a inclinação de Lula por um "agronegócio" apontado pelo governo como neutro, como base social, reforça esse perfil. Isso tem conferido definições ideológicas cada vez maiores ao PMDB e elas se situam logicamente muito mais à direita que o perfil do governo que sustenta.

É difícil explicar de outra maneira o fato de um partido historicamente inorgânico unir-se politicamente, e cada vez mais, em torno de reivindicações com conteúdo ideológico conservador. Um exemplo recente e claro é a exigência da direção partidária de "enquadramento" de um ministro seu, o da Agricultura, Reinholds Stephanes, a uma posição "ruralista" do partido. A exigência é a de que o ministro deixe de assinar um decreto decidido pelo presidente da República numa mediação entre os interesses expressos pelos ministérios da Agricultura e o da Reforma Agrária. "Se o partido o indicou para o cargo, ele tem que seguir a bancada", disse um dos ruralistas pemedebistas, Moacir Micheletto (PMDB-PR). Outro exemplo é a paralisação dos trabalhos da Câmara para pressionar o ministro da Fazenda, Guido Mantega, que é do PT, a liberar verbas para prefeitos pemedebistas, que hoje são a sustentação do partido.

O governo Lula tem conseguido isolar as crises políticas originárias do Legislativo e manter uma estabilidade institucional. Sua popularidade não tem o poder de neutralizar, todavia, a "contaminação" ideológica de seu governo por um PMDB cada vez mais conservador.

Maria Inês Nassif é editora de Opinião. Escreve às quintas-feiras

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