DEU NO VALOR ECONÔMICO
Lembro de ter ouvido, há tempos, o relato de uma conversa na qual supostas raposas políticas avaliavam que, como político, Fernando Henrique Cardoso seria um bom sociólogo: não seria "do ramo". Com a chegada à Presidência em dois grandes triunfos eleitorais, a precariedade da avaliação é evidente. E, com a brilhante carreira como sociólogo internacionalmente reconhecido, seria tola a ideia de inverter o que propõe a avaliação, sugerindo que, como sociólogo, ele seria um bom político. De todo modo, o duplo chapéu de FHC, como líder político e como sociólogo e analista, é razão importante do interesse de suas manifestações, especialmente se trazem a marca polêmica de seu artigo recente no "Estadão" ("Para onde vamos?"), de grande repercussão, complementado com entrevista a Vinícius Torres Freire na "Folha de S. Paulo" dias depois. Como lê-lo?
O artigo contém uma espécie de fenomenologia oposicionista e algo irada do atual governo. Não há como discordar de várias alegações que lá se fazem. Mas há boas razões para indagações sobre a acuidade, a consistência e o alcance do diagnóstico que flui dessa fenomenologia.
Um aspecto saliente é o "autoritarismo popular", associado com "apatia" no início do artigo e na entrevista à "Folha". Mas o autoritarismo popular de vários nomes - cesarismo, bonapartismo, agora "bolivarianismo" - requer um "povão" mobilizado no apoio ao líder. E posso evocar, por exemplo, se a questão é inquirir sobre seu "DNA", que em março de 1997 me era possível ironizar, em artigo na mesma "Folha", as confusas advertências de "despotismo" e "absolutismo" dirigidas ao presidente FHC até por um José Arthur Giannotti - as quais, envolvendo o problema das relações do Executivo com o Congresso e o Judiciário, tinham como pano de fundo justamente o apoio popular com que contava o presidente. E o próprio FHC não se inibia de invocar "a voz rouca das ruas" a propósito da mudança legal que lhe permitiria reeleger-se.
O tema da reeleição permite tomar outro aspecto das denúncias, o relativo à ameaça de atropelo às instituições, à democracia constitucional e suas regras. Creio, e sustentei no momento em que a emenda foi debatida, que o argumento que se podia e pode brandir em favor da reeleição (ao menos uma...) tem duas pontas: de um lado, a de que ela resulta não em restringir as opções do eleitor, mas em aumentá-las, incluindo a possibilidade de recondução do titular cujo desempenho o eleitor avalie favoravelmente; de outro, a ponderação de que o componente de plebiscitarismo e casuísmo que a medida claramente conteve ao ser proposta no primeiro governo FHC se via neutralizado pelo fato de que o que se buscava era a introdução da reeleição pelos meios legais e constitucionais apropriados. Pretender questionar a legitimidade disso com a alegação de que o governo controlava no Congresso os recursos políticos necessários à aprovação da emenda redundaria em negar ao governo o direito de fazer política.
FHC recua de falar de "atropelo da lei" a propósito do governo Lula: teríamos antes atropelo dos "bons costumes". Deixando de lado a questão de saber se a proposta de reeleição se ajustava aos "bons costumes", cabe supor que Lula, para FHC, faz política dentro da lei - e não há por que imaginar, assim sendo, que a eventual disposição menos legalista manifestada nos "despautérios" e iniciativas mais ousadas deixará de encontrar os obstáculos necessários na aparelhagem institucional-legal.
Resta um outro ponto central e complexo: o do "poder sem limites" (não obstante a concessão quanto ao império da lei) que teríamos num Estado "burocrático-corporativo" em que ao aplauso do povo se junta o amálgama formado por sindicatos, movimentos sociais e mundo empresarial, além do BNDES e dos fundos de pensão (acionados inicialmente, como se lembrou na imprensa, no governo FHC...) - sem esquecer que se trata, com Lula, de um personalismo "subperonista" de partidos em crise... Que o substrato sociológico da política brasileira produz partidos fracos e personalismo é algo que o sociólogo Fernando Henrique Cardoso sabe há muito, naturalmente - e o que tivemos de novidade a respeito, com Lula e o PT, foi a indicação clara, até o desastre de 2005, de como seria eventualmente possível fazer do personalismo um instrumento de efetiva construção institucional na faixa partidária, ajudando a criar, nas condições precárias de nossa sociopsicologia política, identificações partidárias fortes e estáveis. Deu errado para o PT, resta o lulo-"peronismo" ("sub"?). Mas o que caberia esperar de FHC como importante líder partidário, em vez da mera constatação da crise dos partidos, é antes a resposta ao desafio de como seu PSDB poderia escapar a ela e penetrar para valer o eleitorado atraído pelos despautérios lulistas.
Quanto ao amálgama, algo curioso a notar é a convergência a respeito entre FHC e certas análises de Luiz Werneck Vianna que têm circulado - com o pormenor de que neste último elas se presumem formuladas de um ponto de vista "de esquerda". A pergunta, como ocorre com frequência, é o que colocar no lugar do Estado que agrega em busca da eficiência definida em termos agregados ou do todo. À esquerda, descartado o "socialismo real", seria talvez possível sonhar com coisas como um socialismo de mercado - mas é difícil ver como caminhar rumo ao sonho sem dose importante de agregação corporativa e welfarista. A FHC, porém, caberia ponderar que o corporativismo integrador se acopla ao modelo mais bem sucedido de socialdemocracia, à qual supostamente aspira o Partido da Socialdemocracia Brasileira. Por certo, é indispensável tratar de controlar democraticamente o Estado-amálgama para que o corporativismo não resulte em oligarquia. Mas, de novo, não é fácil vislumbrar a alternativa a buscar, especialmente se o amálgama redistribui e ajuda a vencer crises econômicas.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
Lembro de ter ouvido, há tempos, o relato de uma conversa na qual supostas raposas políticas avaliavam que, como político, Fernando Henrique Cardoso seria um bom sociólogo: não seria "do ramo". Com a chegada à Presidência em dois grandes triunfos eleitorais, a precariedade da avaliação é evidente. E, com a brilhante carreira como sociólogo internacionalmente reconhecido, seria tola a ideia de inverter o que propõe a avaliação, sugerindo que, como sociólogo, ele seria um bom político. De todo modo, o duplo chapéu de FHC, como líder político e como sociólogo e analista, é razão importante do interesse de suas manifestações, especialmente se trazem a marca polêmica de seu artigo recente no "Estadão" ("Para onde vamos?"), de grande repercussão, complementado com entrevista a Vinícius Torres Freire na "Folha de S. Paulo" dias depois. Como lê-lo?
O artigo contém uma espécie de fenomenologia oposicionista e algo irada do atual governo. Não há como discordar de várias alegações que lá se fazem. Mas há boas razões para indagações sobre a acuidade, a consistência e o alcance do diagnóstico que flui dessa fenomenologia.
Um aspecto saliente é o "autoritarismo popular", associado com "apatia" no início do artigo e na entrevista à "Folha". Mas o autoritarismo popular de vários nomes - cesarismo, bonapartismo, agora "bolivarianismo" - requer um "povão" mobilizado no apoio ao líder. E posso evocar, por exemplo, se a questão é inquirir sobre seu "DNA", que em março de 1997 me era possível ironizar, em artigo na mesma "Folha", as confusas advertências de "despotismo" e "absolutismo" dirigidas ao presidente FHC até por um José Arthur Giannotti - as quais, envolvendo o problema das relações do Executivo com o Congresso e o Judiciário, tinham como pano de fundo justamente o apoio popular com que contava o presidente. E o próprio FHC não se inibia de invocar "a voz rouca das ruas" a propósito da mudança legal que lhe permitiria reeleger-se.
O tema da reeleição permite tomar outro aspecto das denúncias, o relativo à ameaça de atropelo às instituições, à democracia constitucional e suas regras. Creio, e sustentei no momento em que a emenda foi debatida, que o argumento que se podia e pode brandir em favor da reeleição (ao menos uma...) tem duas pontas: de um lado, a de que ela resulta não em restringir as opções do eleitor, mas em aumentá-las, incluindo a possibilidade de recondução do titular cujo desempenho o eleitor avalie favoravelmente; de outro, a ponderação de que o componente de plebiscitarismo e casuísmo que a medida claramente conteve ao ser proposta no primeiro governo FHC se via neutralizado pelo fato de que o que se buscava era a introdução da reeleição pelos meios legais e constitucionais apropriados. Pretender questionar a legitimidade disso com a alegação de que o governo controlava no Congresso os recursos políticos necessários à aprovação da emenda redundaria em negar ao governo o direito de fazer política.
FHC recua de falar de "atropelo da lei" a propósito do governo Lula: teríamos antes atropelo dos "bons costumes". Deixando de lado a questão de saber se a proposta de reeleição se ajustava aos "bons costumes", cabe supor que Lula, para FHC, faz política dentro da lei - e não há por que imaginar, assim sendo, que a eventual disposição menos legalista manifestada nos "despautérios" e iniciativas mais ousadas deixará de encontrar os obstáculos necessários na aparelhagem institucional-legal.
Resta um outro ponto central e complexo: o do "poder sem limites" (não obstante a concessão quanto ao império da lei) que teríamos num Estado "burocrático-corporativo" em que ao aplauso do povo se junta o amálgama formado por sindicatos, movimentos sociais e mundo empresarial, além do BNDES e dos fundos de pensão (acionados inicialmente, como se lembrou na imprensa, no governo FHC...) - sem esquecer que se trata, com Lula, de um personalismo "subperonista" de partidos em crise... Que o substrato sociológico da política brasileira produz partidos fracos e personalismo é algo que o sociólogo Fernando Henrique Cardoso sabe há muito, naturalmente - e o que tivemos de novidade a respeito, com Lula e o PT, foi a indicação clara, até o desastre de 2005, de como seria eventualmente possível fazer do personalismo um instrumento de efetiva construção institucional na faixa partidária, ajudando a criar, nas condições precárias de nossa sociopsicologia política, identificações partidárias fortes e estáveis. Deu errado para o PT, resta o lulo-"peronismo" ("sub"?). Mas o que caberia esperar de FHC como importante líder partidário, em vez da mera constatação da crise dos partidos, é antes a resposta ao desafio de como seu PSDB poderia escapar a ela e penetrar para valer o eleitorado atraído pelos despautérios lulistas.
Quanto ao amálgama, algo curioso a notar é a convergência a respeito entre FHC e certas análises de Luiz Werneck Vianna que têm circulado - com o pormenor de que neste último elas se presumem formuladas de um ponto de vista "de esquerda". A pergunta, como ocorre com frequência, é o que colocar no lugar do Estado que agrega em busca da eficiência definida em termos agregados ou do todo. À esquerda, descartado o "socialismo real", seria talvez possível sonhar com coisas como um socialismo de mercado - mas é difícil ver como caminhar rumo ao sonho sem dose importante de agregação corporativa e welfarista. A FHC, porém, caberia ponderar que o corporativismo integrador se acopla ao modelo mais bem sucedido de socialdemocracia, à qual supostamente aspira o Partido da Socialdemocracia Brasileira. Por certo, é indispensável tratar de controlar democraticamente o Estado-amálgama para que o corporativismo não resulte em oligarquia. Mas, de novo, não é fácil vislumbrar a alternativa a buscar, especialmente se o amálgama redistribui e ajuda a vencer crises econômicas.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
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