DEU EM O ESTADO DE S. PAULO (8/11/2009)
Vinte anos se passaram desde a queda do Muro de Berlim, um dos símbolos vergonhosos da Guerra Fria e da divisão do mundo em esferas de influência antagônicas. Hoje, podemos revisitar esses acontecimentos de maneira menos emocional.
O anunciado “Fim da História” não se concretizou. Contudo, tampouco se concretizou o mundo em que muitos de minha geração acreditavam, um mundo em que a humanidade poderia, enfim, esquecer o absurdo da corrida armamentista, conflitos regionais e disputas ideológicas estéreis, e entrar num século dourado com segurança coletiva, uso racional de recursos, fim da pobreza e da desigualdade.
Outra consequência do fim da Guerra Fria é a realização de um dos postulados centrais do novo pensamento: a interdependência de elementos importantes que chegam ao coração da existência humana. Isso envolve não só processos e eventos em diferentes continentes, mas a conexão orgânica entre mudanças nas condições econômicas, tecnológicas, sociais, demográficas e culturais que determinam a existência diária de bilhões no planeta. A humanidade começou a se transformar em uma civilização única.
Naturalmente, nós políticos do século passado podemos nos orgulhar de termos evitado uma guerra nuclear. Mas, para milhões de pessoas, o mundo não se tornou mais seguro. Ao contrário, surgiram inúmeros conflitos locais e guerras étnicas e religiosas, como uma maldição no novo mapa-múndi da política, produzindo uma quantidade imensa de vítimas.
Prova da irracionalidade e irresponsabilidade da nova geração de políticos é o fato de que os gastos com defesa de numerosos países, grandes ou pequenos, é hoje maior que durante a Guerra Fria, e as táticas de uso da força são, de novo, a maneira padrão de lidar com disputas.
O mundo, nas últimas décadas, não se tornou um lugar mais justo: as disparidades entre ricos e pobres se mantiveram ou aumentaram, não só entre Norte e Sul, mas também dentro dos países desenvolvidos. Os problemas sociais na Rússia, assim como em outras nações pós-comunistas, são a prova de que o simples abandono do modelo fracassado de economia centralizada não garante a competitividade global e o respeito aos princípios de justiça social ou um padrão de vida digno para a população.
Novos desafios podem ser acrescidos aos do passado. Um deles é o terrorismo. Num contexto em que a guerra mundial já não é mais um instrumento de dissuasão entre as nações mais poderosas, o terrorismo se tornou a “bomba atômica do pobre”. A proliferação de armas de destruição em massa, a competição entre os antigos adversários da Guerra Fria para alcançar novos níveis tecnológicos de produção de armas e a presença de novos pretendentes a um papel influente num mundo multipolar, tudo faz aumentar a sensação de caos na política global.
A crise de ideologias, que ameaça se transformar numa crise de ideais e valores, marca outra perda de pontos de referência sociais e fortalece a atmosfera de pessimismo político e niilismo. A verdadeira conquista que podemos celebrar é o fato de que o século 20 marcou o fim de ideologias totalitárias, em particular daquelas que se basearam em crenças utópicas.
Novas ideologias, porém, estão substituindo as velhas. Muitos agora esquecem que a queda do Muro não foi a causa de mudanças, mas a consequência de movimentos profundos de reforma popular. Após décadas do experimento bolchevista e a percepção de que este deixou a sociedade soviética num beco sem saída, um forte impulso pela reforma democrática evoluiu na forma da perestroika (reestruturação), que também se tornou acessível a países do Leste Europeu.
O capitalismo ocidental, contudo, privado de seu velho adversário e imaginando-se o vencedor inconteste e a encarnação do progresso global, corre o risco de conduzir a sociedade a outro beco sem saída histórico.
A crise econômica global de hoje revelou os defeitos do modelo de desenvolvimento ocidental que foi imposto ao restante do mundo como o único possível. Revelou também que não só o socialismo burocrático, mas também o capitalismo ultraliberal precisa de uma reforma democrática profunda — seu próprio tipo de perestroika.
Muitas verdades que já foram consideradas inquestionáveis, tanto no Oriente como no Ocidente, deixaram de ser verdades, incluindo a fé cega no todo poderoso mercado e, sobretudo, em sua natureza democrática. Havia também a fé de que o modelo ocidental de democracia seria disseminado mecanicamente para outras sociedades com experiências e tradições diferentes. Na situação atual, mesmo um conceito como o progresso social, que parece ser compartilhado por todos, precisa ser definido mais precisamente.
(Mikhail Gorbachev foi líder da União Soviética de 1985 -1991. Vencedor do prêmio Nobel da Paz em 1990, ele é atualmente presidente da Fundação Internacional para Estudos Políticos e Sócio-Econômicos - A Fundação Gorbachev)
Vinte anos se passaram desde a queda do Muro de Berlim, um dos símbolos vergonhosos da Guerra Fria e da divisão do mundo em esferas de influência antagônicas. Hoje, podemos revisitar esses acontecimentos de maneira menos emocional.
O anunciado “Fim da História” não se concretizou. Contudo, tampouco se concretizou o mundo em que muitos de minha geração acreditavam, um mundo em que a humanidade poderia, enfim, esquecer o absurdo da corrida armamentista, conflitos regionais e disputas ideológicas estéreis, e entrar num século dourado com segurança coletiva, uso racional de recursos, fim da pobreza e da desigualdade.
Outra consequência do fim da Guerra Fria é a realização de um dos postulados centrais do novo pensamento: a interdependência de elementos importantes que chegam ao coração da existência humana. Isso envolve não só processos e eventos em diferentes continentes, mas a conexão orgânica entre mudanças nas condições econômicas, tecnológicas, sociais, demográficas e culturais que determinam a existência diária de bilhões no planeta. A humanidade começou a se transformar em uma civilização única.
Naturalmente, nós políticos do século passado podemos nos orgulhar de termos evitado uma guerra nuclear. Mas, para milhões de pessoas, o mundo não se tornou mais seguro. Ao contrário, surgiram inúmeros conflitos locais e guerras étnicas e religiosas, como uma maldição no novo mapa-múndi da política, produzindo uma quantidade imensa de vítimas.
Prova da irracionalidade e irresponsabilidade da nova geração de políticos é o fato de que os gastos com defesa de numerosos países, grandes ou pequenos, é hoje maior que durante a Guerra Fria, e as táticas de uso da força são, de novo, a maneira padrão de lidar com disputas.
O mundo, nas últimas décadas, não se tornou um lugar mais justo: as disparidades entre ricos e pobres se mantiveram ou aumentaram, não só entre Norte e Sul, mas também dentro dos países desenvolvidos. Os problemas sociais na Rússia, assim como em outras nações pós-comunistas, são a prova de que o simples abandono do modelo fracassado de economia centralizada não garante a competitividade global e o respeito aos princípios de justiça social ou um padrão de vida digno para a população.
Novos desafios podem ser acrescidos aos do passado. Um deles é o terrorismo. Num contexto em que a guerra mundial já não é mais um instrumento de dissuasão entre as nações mais poderosas, o terrorismo se tornou a “bomba atômica do pobre”. A proliferação de armas de destruição em massa, a competição entre os antigos adversários da Guerra Fria para alcançar novos níveis tecnológicos de produção de armas e a presença de novos pretendentes a um papel influente num mundo multipolar, tudo faz aumentar a sensação de caos na política global.
A crise de ideologias, que ameaça se transformar numa crise de ideais e valores, marca outra perda de pontos de referência sociais e fortalece a atmosfera de pessimismo político e niilismo. A verdadeira conquista que podemos celebrar é o fato de que o século 20 marcou o fim de ideologias totalitárias, em particular daquelas que se basearam em crenças utópicas.
Novas ideologias, porém, estão substituindo as velhas. Muitos agora esquecem que a queda do Muro não foi a causa de mudanças, mas a consequência de movimentos profundos de reforma popular. Após décadas do experimento bolchevista e a percepção de que este deixou a sociedade soviética num beco sem saída, um forte impulso pela reforma democrática evoluiu na forma da perestroika (reestruturação), que também se tornou acessível a países do Leste Europeu.
O capitalismo ocidental, contudo, privado de seu velho adversário e imaginando-se o vencedor inconteste e a encarnação do progresso global, corre o risco de conduzir a sociedade a outro beco sem saída histórico.
A crise econômica global de hoje revelou os defeitos do modelo de desenvolvimento ocidental que foi imposto ao restante do mundo como o único possível. Revelou também que não só o socialismo burocrático, mas também o capitalismo ultraliberal precisa de uma reforma democrática profunda — seu próprio tipo de perestroika.
Muitas verdades que já foram consideradas inquestionáveis, tanto no Oriente como no Ocidente, deixaram de ser verdades, incluindo a fé cega no todo poderoso mercado e, sobretudo, em sua natureza democrática. Havia também a fé de que o modelo ocidental de democracia seria disseminado mecanicamente para outras sociedades com experiências e tradições diferentes. Na situação atual, mesmo um conceito como o progresso social, que parece ser compartilhado por todos, precisa ser definido mais precisamente.
(Mikhail Gorbachev foi líder da União Soviética de 1985 -1991. Vencedor do prêmio Nobel da Paz em 1990, ele é atualmente presidente da Fundação Internacional para Estudos Políticos e Sócio-Econômicos - A Fundação Gorbachev)
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