DEU NO CORREIO BRAZILIENSE
Em 1989, a primeira eleição presidencial direta em três décadas transformou-se em marco no processo de redemocratização do país
Maurício Lara
O economista José Celso de Oliveira estava perto dos 40 anos quando, em 15 de novembro de 1989, colocou o terno do casamento para votar pela primeira vez em uma eleição presidencial, de tão solene que considerou a ocasião. Não era para menos, porque desde a vitória de Jânio Quadros, em 1960, nunca mais o brasileiro tinha votado para presidente e esse fato transformou a disputa de 1989 no maior marco do processo de redemocratização do país.
“Praticamente 90% dos eleitores nunca tinham votado para presidente. De lá para cá, foi acontecendo uma consolidação no processo eleitoral, que se torna rotina na vida do cidadão”, avalia o cientista político Marcus Figueiredo, pesquisador e professor do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj). Ele classifica aquele momento de “eleição crítica” por ter produzido “uma mudança brutal no realinhamento eleitoral” e por ter sido o “início do processo de amadurecimento do eleitor brasileiro”.
Para o cientista político, depois da experiência de 1989, o eleitor nunca mais foi o mesmo. “O episódio produziu um efeito extraordinário para o eleitor não acreditar mais na história de caçador de qualquer coisa, de salvador da pátria. Agora o candidato tem de ter substância”, avalia Figueiredo, referindo-se explicitamente ao ex-governador de Alagoas, Fernando Collor de Melo, que se autonomeou “caçador de marajás” e foi o vencedor do pleito.
Collor, um dos 22 candidatos à presidência, disputou com vários ícones da política brasileira, como Ulysses Guimarães, Leonel Brizola, Aureliano Chaves e Mário Covas. Todos eles foram ficando pelo caminho ao longo da campanha. O eleitor queria mudanças, queria o novo e acabou levando para o segundo turno exatamente os dois candidatos mais jovens e identificados como novidade, Collor e Luiz Inácio Lula da Silva. “Collor representava a renovação pela direita e, pela esquerda, tinha Lula, Brizola e Mário Covas”, analisa Marcus Figueiredo.
Comunista
Havia outros candidatos, pela esquerda e pela direita, entusiasmados pela “culminância do processo de restauração democrática”, como define o candidato do PCB, o pernambucano Roberto Freire, atual presidente nacional do PPS. Ele enumera fatos anteriores à eleição que contribuíram para valorizar o pleito: movimento das Diretas Já, em 1984, eleição de Tancredo Neves no colégio eleitoral, em 1985, e a promulgação da Constituição de 1988. “O país vinha num crescendo de participação”, lembra.
Para Freire, a vitória de Collor não coloca em dúvida a capacidade do eleitor de fazer escolhas. “O povo sabe votar. Pode até se enganar, mas, naquele momento, Collor era o jovem que parecia representar o novo”, diz Freire. O candidato do PL, o paulista Guilherme Afif Domingos, também com um discurso de modernização, chegou a ser visto como uma alternativa pelo eleitorado cerca de dois meses antes da votação. “Infelizmente, o Collor enganou todo mundo”, diz o cientista político Marcus Figueiredo. Mas o saldo, avalia, é muito positivo, pelo que a eleição significou em termos de aprendizado, como se o eleitorado tivesse atirado no que viu e acertado no que não viu.
Outra concordância é que a emoção, que tanto marcou a campanha de 1989, tem poucas possibilidades de se repetir. “O que marcou mais foi a vibração, a vontade do brasileiro em participar do processo”, lembra o publicitário Almir Sales, coordenador da comunicação na campanha de Collor. “Foi um momento único, que deixa exemplos”, avalia Roberto Freire. “A eleição fica rotineira, o que torna o processo muito mais racional”, completa Marcus Figueiredo. -
Vitória do marketing
Uma das primeiras providências de Fernando Collor, na fase de preparação para a disputa eleitoral, foi mudar o nome do Partido da Juventude (PJ), a que pertencia, para Partido da Reconstrução Nacional (PRN). A mudança foi decidida a partir da interpretação de pesquisas qualitativas e quantitativas, ferramentas que a campanha utilizou fartamente e que indicavam riscos no fato de um candidato tão jovem, do partido “da juventude”, encontrar resistências perante o eleitorado mais velho e mais conservador. Já um partido “da reconstrução nacional” trazia no nome a síntese do discurso construído para o candidato.
Esse fato ilustra as novidades introduzidas na campanha de 1989 por Collor, que se valeu, por exemplo, de marketing eleitoral, pesquisas de opinião pública, computação gráfica e novos formatos para fazer programas de televisão. O coordenador de comunicação da campanha, o mineiro Almir Sales, na época proprietário da Setembro Propaganda, conta que as reuniões para definição do discurso eram realizadas em Belo Horizonte, na sede do instituto Vox Populi, que se encarregava das pesquisas. “Collor aceitava opinião, a gente discutia. As qualitativas eram uma orientação importante e o Marcos Coimbra (diretor do instituto) teve uma importância muito grande no processo.”
Almir Salles diz que Collor, pelo seu estilo, incorporou muito bem o discurso elaborado. “Ele era, efetivamente, o novo, o jovem guerreiro, o caçador de marajás”, avalia. Mas o candidato, segundo ele, tinha também muita intuição para decidir os rumos. “A sacada do ‘caçador de marajás’ é dele”, revela o publicitário, que recorda como a campanha, para Collor, começou no ano anterior, com a veiculação, em rede de televisão, de programas partidários com uma hora de duração.
Aluguel
Foram utilizados horários de partidos “nanicos”, como PTR e PSC, para construir a imagem do governador de Alagoas. E introduzidos novos formatos e conceitos, com a utilização de computação gráfica e gravações feitas em várias regiões do Brasil, tratando de vários temas. “Os assuntos eram divididos por ‘intervalos comerciais’ especialmente criados para os programas”, conta Almir Salles. Ele afirma que também acreditava ser Collor “uma saída para o Brasil cartorial, estagnado, amarrado pela burocracia”. O publicitário, hoje, fala da frustração com o resultado: “Eu fiquei muito decepcionado, porque acreditei”.
Mas todos concordam também que os tempos mudaram e aquele tipo de discurso de 1989 não funcionaria mais. “Hoje a eleição é mais racional do que emocional. Não faz mais sentido olhar para trás”, aposta Afif Domingos. “O caminho hoje seria diferente. Tem que partir para os grandes temas e levar a discussão para a sociedade. As coisas mudaram, o país mudou”, explica Almir Sales. (ML)
Rede Povo e Lula Lá
Em contraposição à campanha moderna e repleta de tecnologia de Fernando Collor, o grupo responsável pela comunicação de Luiz Inácio Lula da Silva agiu baseado em análises políticas e na intuição. Nos grupos de todos os candidatos, mesmo os comunicadores mais experientes jamais tinham feito uma campanha presidencial, por causa do longo jejum de eleições diretas. A visão era muito mais política e não marqueteira, como é hoje”, diz Toni Cotrim, um dos coordenadores da Rede Povo, uma paródia da maior rede de televisão do Brasil que, supunham eles, seria a principal adversária de Lula na campanha.
A ideia da Rede Povo surgiu quando os cinco do grupo comiam uma pizza em São Paulo. Na época, admite Cotrim, eles não imaginavam que Lula iria tão longe na disputa. “Achávamos que íamos marcar posição. No meio do primeiro turno começamos a entusiasmar”, diz. Sem possibilidade de testar o formato, já que, no primeiro turno, a campanha de Lula não dispôs de pesquisas próprias, foi difícil convencer a direção da campanha a colocar a Rede Povo no ar. Os publicitários tiveram que negociar. “Fizemos uma aposta: se na primeira pesquisa divulgada Lula tivesse subido, continuaríamos”, revela Cotrim. Deu certo. A Rede Povo “pegou”, bem como o jingle do Lula lá, de Hilton Acioly, e o gesto da letra L formada com o indicador e o polegar, sugerido por um militante do Paraná.
A perspectiva de vitória surpreendeu os coordenadores de campanha. O ex-ministro Luiz Gushiken revelou que, já no segundo turno, preocupado com a governabilidade, disse ao candidato: “Lula, nós vamos ganhar essa eleição e precisamos conversar com o exército”. Só aí, contou Gushiken, os militares foram procurados. No outro lado, ao contrário, desde o início o planejamento era para vencer. “Tocamos a campanha, desde o princípio com muito entusiasmo. A expectativa era de vitória”, afirma Almir Salles.
Sem pesquisas
Outros candidatos concordam que os diferenciais da campanha de Collor foram decisivos. Roberto Freire e Afif Domingos dizem que não dispuseram de pesquisas para suas análises. “Collor foi um candidato moderno. Quem não tiver isso hoje (as ferramentas) é como se faltasse uma perna”, avalia Freire. Já Ulysses Guimarães, mesmo dispondo de profissionais de comunicação na campanha, não conseguiu lidar com a questão da idade mais avançada.
O jingle dele, por exemplo, falava em “bota fé no velhinho”. “Eles erraram”, avalia Toni Cotrim. Segundo ele, por convicções pessoais, Mário Covas não acreditava em marketing eleitoral e Leonel Brizola não tinha praticamente nenhuma estrutura de comunicação. (ML)
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