DEU EM O GLOBO
Vinte anos depois, os três estão juntos e defendem aliança, ironizada por Maluf: "Hoje, perto do Lula, me sinto um comunista"
Gerson Camarotti e Maria Lima
BRASÍLIA. A primeira eleição direta para presidente da República na redemocratização do país, em 1989, foi marcada por agressões e ataques pessoais dos três principais personagens: os candidatos Fernando Collor de Mello (PRN), que seria eleito presidente, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que ficou em segundo lugar, e o então presidente da República, José Sarney. Era ladrão para lá, corrupto para cá e ditador de opereta para acolá.
Collor ameaçava pôr os corruptos do governo Sarney na cadeia, se eleito. Sarney processou Collor por injúria e difamação.
No calor da campanha mais eletrizante, com 22 candidatos a presidente, o alagoano xingou Lula de cambalacheiro, foi eleito e não botou ninguém na cadeia.
Foi ele próprio apeado do cargo após dois anos de poder.
Depois de 20 anos, já com Lula na Presidência, os três arquiinimigos políticos
transformaramse em aliados em torno da base do governo petista, o que surpreendeu até os governistas.
As declarações de cada um para justificar a repentina amizade se baseiam na alegação de que todos foram alvo de campanhas difamatórias e injustiças. Outra argumentação é que não foram eles que mudaram, mas o tempo e a política. De forma reservada, interlocutores de Lula dizem o que mais mudou nessas duas décadas: o pragmatismo e a necessidade de governabilidade.
A relação de Lula com Sarney foi construída de forma gradual e, aparentemente, sem grandes traumas. Em 2002, o atual presidente do Senado apoiou a eleição de Lula. Mas a aproximação de Lula com Collor foi um processo mais lento e “difícil” para o presidente, segundo relato de Lula a um interlocutor.
Lula até hoje tem na memória os ataques de Collor na campanha, na qual foi atingido com um golpe abaixo da linha da cintura: a acusação de tentativa de aborto da filha Lurian. Sarney também foi alvo de Lula e Collor, que acusaram seu governo de corrupção: — O senhor José Sarney sempre foi um político de segunda classe, nunca teve uma atitude de coragem. O senhor pegou carona na história, beneficiandose de uma tragédia que abalou o país — disparou Collor em seu programa de TV, reagindo à articulação do então presidente para lançar a candidatura de Silvio Santos a 15 dias do 1oturno.
Hoje beneficiário do apoio de Collor no Senado, Sarney relativiza os episódios de 89.
— O tempo é que mudou. O tempo passado é história. As circunstâncias não são as mesmas.
Só quem não mudam são as pedras, como diria Rui Barbosa.
Não sou capaz de ter ódio e ressentimento — diz Sarney.
Ele diz que a eleição era um fato político inédito no Brasil, até porque não estavam em disputa outros cargos. Segundo ele, foi isso que permitiu o surgimento das candidaturas de Collor e Lula, afetando candidaturas tradicionais.
Chega a citar a votação “inexpressiva” do então candidato do chamado PMDB histórico, o ex-presidente da Câmara Ulysses Guimarães.
Sarney relembra que o início da campanha foi marcado por ataques dos candidatos contra sua gestão, mas que, no segundo turno, seu governo saiu de pauta: — Saí de cena. A partir dali, foi uma disputa ideológica: o operário contra o representante das forças conservadoras. Os dois não estavam preparados para assumir o governo. Isso fica claro, porque aconteceu o que aconteceu (impeachment) com Collor.
Este ano, Collor integrou a tropa de choque de Sarney para defender a sua manutenção no cargo de presidente do Senado, no auge da crise política que se arrastou por quase seis meses na Casa.
O entrosamento dos dois com o presidente Lula nesse processo foi tamanho que, um dia depois do destemperado bate-boca no plenário com o senador Pedro Simon (PMDB-RS), para defender Sarney, o senador Collor foi recebido pelo presidente Lula em seu gabinete.
Além do episódio com a filha Lurian, Collor foi duro também nos ataques a Lula, em 1989: — O outro candidato (Lula) defende abertamente a luta armada, a invasão de casas e apartamentos. Lula é um cambalacheiro — dizia Collor.
Mas, para Lula, também são águas passadas. Este ano, em Alagoas, ele abraçou o ex-desafeto num palanque, afirmando que queria “fazer justiça ao senador Collor e ao senador Renan Calheiros (PMDB-AL)”, por causado apoio que dão ao governo no Senado. No mesmo período, o da crise no Senado, Lula ganhou a ira dos petistas ao enquadrar a bancada do PT em defesa de Sarney.
— Na vida pública, não podemos avançar olhando só para o retrovisor. Para quem é minoria, a aliança é imprescindível. Para quem é maioria, a aliança facilita.
Mas não é fácil superar as divergências, as diferenças e, principalmente, as marcas que ficaram do passado. Mas eu tento — diz o senador Aloizio Mercadante (PT-SP), um dos coordenadores da campanha de Lula em 89. — O ano de 89 passou.
Mas aconteceu. Porque passou, é possível distensionar e construir novas relações políticas.
Mas porque aconteceu, da forma como aconteceu, a gente não pode e nunca deve esquecer, para que não se repita.
Para muitos presidenciáveis de 1989, a aliança atual é vista por ângulos diferentes. O deputado Paulo Maluf (PP-SP) aprova a aproximação de ex-desafetos: — Hoje o presidente Lula é quem está próximo de nossas ideias. Antes, a sua barba lembrava a de Fidel Castro. Lula transmitia medo. Atualmente, perto do Lula, me sinto um comunista diante da maneira histérica com que ele defende os banqueiros.
O Lula se reciclou. E , atualmente , não vejo grande divergência ideológica e de pensamento entre Collor, Lula, Sarney e eu — ironiza Maluf (PP) , que, em 89, foi candidato do PDS e apoiou Collor no segundo turno.
Mas esse pensamento não é consenso entre os presidenciáveis daquela eleição.
— Lula competia com o Collor e o Sarney no campo ético.
Agora, todos estão juntos,
pela ética, que foi a grande perdedora dessa aliança — diz o deputado Fernando Gabeira (PV), também presidenciável de 1989 e que, no segundo turno, apoiou Lula.
— Vejo a aliança como desserviço à política brasileira.
Eram pessoas de lados opostos e que, sem explicação, se tornaram aliadas. São esses conchavos e acordos que o eleitor não consegue entender. Eles se acham no direito de se agrupar e esquecer tudo o que falaram anteriormente um do outro.
Agora se relacionam normalmente, como se nada tivesse ocorrido — critica o líder do DEM, deputado Ronaldo Caiado (GO), que naquela eleição foi candidato pelo PSD e apoiou Collor no segundo turno.
O presidente do PPS, Roberto Freire, acha que a incoerência de Lula vem desde 1989, citando que ele vetou o apoio do PMDB e de Ulysses em seu palanque, no segundo turno. Mas agora, observa o pós-comunista, aceita o PMDB, um PMDB bem mais complicado, em sua base. Ele foi candidato pelo PCB e apoiou Lula no segundo turno: — O mundo mudou muito.
Mas essa estranha aliança não é em função da mudança do mundo, mas sim da mudança dos personagens. Principalmente, de Lula.
Para o então coordenador da campanha de Ulysses e que na época presidia o PMDB, o hoje senador Jarbas Vasconcelos (PE) , a aliança atual de Lula-CollorSarney é a prova de fragilidade do sistema partidário: — Essa aliança é estapafúrdia.
Há 20 anos, Collor chamava Sarney de ladrão, corrupto, e hoje estão de mãos dadas. Já Lula chamava Sarney de grileiro e dizia que ele havia assaltado o Maranhão. Isso mostra que o quadro partidário brasileiro chegou ao fim.
Procurado, o senador Collor não quis falar.
“Não sou eu quem diz que Lula quis forçar o aborto. Quem diz é Miriam Cordeiro, mãe da Lurian"
Collor sobre Lula, em 89
“O Brasil é testemunha do desatino com que fui agredido por um candidato transtornado"
Sarney sobre Collor, em 89
“Pena que esse moço seja tão corrupto"
Luiz Inácio Lula da Silva, então candidato do PT, atacando o adversário Fernando Collor em 1989
“Sarney tem história no Brasil suficiente para que não seja tratado como se fosse uma pessoa comum
Lula, defendendo Sarney este ano
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