DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS
Proletariado rebelde dos anos dourados de Vila Euclides não teve herdeiros capazes de lidar com um minivestido na faculdade
A filha de 20 anos de um metalúrgico operário de montadora do ABC, estudante do curso noturno de turismo da Uniban, de São Bernardo do Campo, e durante o dia empregada de um mercadinho em frente a sua casa, em Diadema, foi moralmente linchada por seus colegas, quase todos trabalhadores como ela. O motivo foi o traje rosa e um pouco curto da moça, que a destacava de suas colegas quando saiu da sala de aula para ir ao banheiro feminino. Vídeos e fotografias feitos pelos próprios estudantes que a assediavam e apupavam mostram um cenário que era também de linchamento físico. A moça escapou por pouco. O episódio expôs as muitas contradições não resolvidas na situação social da emblemática classe operária do subúrbio paulistano, em particular a da histórica região industrial do ABC. Os filhos do proletariado dos dourados tempos políticos das assembleias sindicais do Estádio da Vila Euclides não herdaram da geração de seus pais uma sociedade tolerante e democrática. Seus pais se limitaram às reivindicações salariais e de poder.
A intelectualidade acadêmica dos anos finais da ditadura militar rejubilara-se com o surgimento do que foi chamado de "novo sindicalismo". Uma enxurrada de conceitos e de interpretações imputou à classe operária regional, de carne e osso, as virtudes da classe operária filosófica, como a definiu Agnes Heller em outro contexto, de análises feitas em outros países e outras circunstâncias. De modo geral, as análises que enveredaram pelo equívoco de uma interpretação baseada no pressuposto da luta de classes deixaram de lado as complexas mediações, culturais, sociais e históricas, das determinações que fizeram da classe operária da região industrial uma classe operária historicamente singular e até relativamente diversa da dos manuais de ciência política, conservadora e corporativa.
O proletariado regional, no passado relativamente recente, ganhara corpo e vida na cultura conservadora e conformista do trabalhismo de Vargas. Excepcionalmente, o Partido Comunista, já na ilegalidade, elegera prefeito e maioria dos vereadores da região, em 1947, cassados minutos antes da posse. Região majoritariamente católica, com a criação da diocese e a nomeação do primeiro bispo, dom Jorge Marcos de Oliveira, em 1954, propôs-se a Igreja a criar lideranças operárias e as condições de surgimento de um partido laboral alternativo, fundado nas premissas da Ação Católica e do anticapitalismo de Pio XI. Teve êxito, com a ascensão sindical de Lula e o surgimento do PT, ambos, a seu modo, consubstanciando os valores da tradição conservadora, familística e religiosa do operariado regional.
O tumulto na Uniban teve como protagonistas justamente os herdeiros do problemático legado dessa tradição e de insuficiências dela decorrentes. A ascensão social do operariado do ABC é óbvia em toda aquela região. Mas um operariado que, se demonstrou competência na adesão ao capitalismo e na ambição de poder, não demonstrou a menor competência para criar as bases sociais da ressocialização de seus filhos para a sociedade moderna, aberta e democrática. O mercado de serviços educacionais tratou de suprir essa carência, com a disseminação de escolas de terceiro ciclo, movidas pelo lucro, que se propõem a qualificar para as eventuais oportunidades de trabalho, mas não têm condições nem o propósito de ressocializar para os desafios e os embates da vida cotidiana. O novo sindicalismo e o novo partido não criaram nem um novo modo de vida nem uma nova cultura centrada nos valores da emancipação do homem de suas pobrezas, a maior das quais é a pobreza de esperança, mesmo na prosperidade material que a região alcançou.
As origens culturais reacionárias dessa geração já se manifestaram antes no surgimento dos chamados Carecas do ABC e sua prática racista. Carlos Reichenbach, inspirado nos fatos relativos à ação desse grupo, produziu um excelente filme - Garotas do ABC -, de 2004, que é justamente um retrato da crise de gerações que vem alcançando profundamente as famílias operárias e de certo modo antecipa ocorrências como a de agora. Não podemos nos esquecer de acontecimento de motivação semelhante, conservadora, em 2008, na Escola Amadeu Amaral, no bairro do Belenzinho, envolvendo uma adolescente, que culminou em briga e na depredação da escola. Nesses vários casos, a concepção que os regeu foi a do linchamento.
A prática do linchamento tem sido em todas as partes forma violenta de ação conservadora, no sentido de enquadrar e até cancelar a presença dos diferentes e dos inovadores, como a moça da Uniban, para restaurar a ordem conformista, supostamente por eles ameaçada. A região que mais lincha e ameaça de linchamento no Brasil é justamente a região metropolitana de São Paulo, a do subúrbio e dos bairros operários. A motivação tem sido a punição para restabelecimento ou imposição da ordem onde surgem indícios de ruptura e de violação dos valores do autoritário conservadorismo popular, como no caso dessa saia curta. Um conservadorismo autodefensivo, é bom que se diga, em face dos efeitos desagregadores da modernização e da transformação social.
Os estudantes entrevistados pela mídia expuseram sua censura conservadora e intolerante à moça e sua censura à própria mídia pela visibilidade que deu à ocorrência, pelo que entendem ser a estigmatização da escola, o que os estigmatizaria como personagens vicários da instituição. A culpa não seria de quem agiu violentamente, mas de quem divulgou a violência, concepção que é outra expressão de intolerância. E todos os grupos que foram para a porta da escola protestar em favor dos direitos da moça foram rechaçados com gritos de "cala a boca" e "cai fora". Resta saber o que pensam os estudantes da Uniban da nudez de solidariedade dos estudantes da UnB, completamente distantes desse mundo operário, refugiados nas ilusões da classe média e de seus privilégios de estudantes de escola pública e gratuita.
Professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Dentre outros livros, autor de A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34)
Proletariado rebelde dos anos dourados de Vila Euclides não teve herdeiros capazes de lidar com um minivestido na faculdade
A filha de 20 anos de um metalúrgico operário de montadora do ABC, estudante do curso noturno de turismo da Uniban, de São Bernardo do Campo, e durante o dia empregada de um mercadinho em frente a sua casa, em Diadema, foi moralmente linchada por seus colegas, quase todos trabalhadores como ela. O motivo foi o traje rosa e um pouco curto da moça, que a destacava de suas colegas quando saiu da sala de aula para ir ao banheiro feminino. Vídeos e fotografias feitos pelos próprios estudantes que a assediavam e apupavam mostram um cenário que era também de linchamento físico. A moça escapou por pouco. O episódio expôs as muitas contradições não resolvidas na situação social da emblemática classe operária do subúrbio paulistano, em particular a da histórica região industrial do ABC. Os filhos do proletariado dos dourados tempos políticos das assembleias sindicais do Estádio da Vila Euclides não herdaram da geração de seus pais uma sociedade tolerante e democrática. Seus pais se limitaram às reivindicações salariais e de poder.
A intelectualidade acadêmica dos anos finais da ditadura militar rejubilara-se com o surgimento do que foi chamado de "novo sindicalismo". Uma enxurrada de conceitos e de interpretações imputou à classe operária regional, de carne e osso, as virtudes da classe operária filosófica, como a definiu Agnes Heller em outro contexto, de análises feitas em outros países e outras circunstâncias. De modo geral, as análises que enveredaram pelo equívoco de uma interpretação baseada no pressuposto da luta de classes deixaram de lado as complexas mediações, culturais, sociais e históricas, das determinações que fizeram da classe operária da região industrial uma classe operária historicamente singular e até relativamente diversa da dos manuais de ciência política, conservadora e corporativa.
O proletariado regional, no passado relativamente recente, ganhara corpo e vida na cultura conservadora e conformista do trabalhismo de Vargas. Excepcionalmente, o Partido Comunista, já na ilegalidade, elegera prefeito e maioria dos vereadores da região, em 1947, cassados minutos antes da posse. Região majoritariamente católica, com a criação da diocese e a nomeação do primeiro bispo, dom Jorge Marcos de Oliveira, em 1954, propôs-se a Igreja a criar lideranças operárias e as condições de surgimento de um partido laboral alternativo, fundado nas premissas da Ação Católica e do anticapitalismo de Pio XI. Teve êxito, com a ascensão sindical de Lula e o surgimento do PT, ambos, a seu modo, consubstanciando os valores da tradição conservadora, familística e religiosa do operariado regional.
O tumulto na Uniban teve como protagonistas justamente os herdeiros do problemático legado dessa tradição e de insuficiências dela decorrentes. A ascensão social do operariado do ABC é óbvia em toda aquela região. Mas um operariado que, se demonstrou competência na adesão ao capitalismo e na ambição de poder, não demonstrou a menor competência para criar as bases sociais da ressocialização de seus filhos para a sociedade moderna, aberta e democrática. O mercado de serviços educacionais tratou de suprir essa carência, com a disseminação de escolas de terceiro ciclo, movidas pelo lucro, que se propõem a qualificar para as eventuais oportunidades de trabalho, mas não têm condições nem o propósito de ressocializar para os desafios e os embates da vida cotidiana. O novo sindicalismo e o novo partido não criaram nem um novo modo de vida nem uma nova cultura centrada nos valores da emancipação do homem de suas pobrezas, a maior das quais é a pobreza de esperança, mesmo na prosperidade material que a região alcançou.
As origens culturais reacionárias dessa geração já se manifestaram antes no surgimento dos chamados Carecas do ABC e sua prática racista. Carlos Reichenbach, inspirado nos fatos relativos à ação desse grupo, produziu um excelente filme - Garotas do ABC -, de 2004, que é justamente um retrato da crise de gerações que vem alcançando profundamente as famílias operárias e de certo modo antecipa ocorrências como a de agora. Não podemos nos esquecer de acontecimento de motivação semelhante, conservadora, em 2008, na Escola Amadeu Amaral, no bairro do Belenzinho, envolvendo uma adolescente, que culminou em briga e na depredação da escola. Nesses vários casos, a concepção que os regeu foi a do linchamento.
A prática do linchamento tem sido em todas as partes forma violenta de ação conservadora, no sentido de enquadrar e até cancelar a presença dos diferentes e dos inovadores, como a moça da Uniban, para restaurar a ordem conformista, supostamente por eles ameaçada. A região que mais lincha e ameaça de linchamento no Brasil é justamente a região metropolitana de São Paulo, a do subúrbio e dos bairros operários. A motivação tem sido a punição para restabelecimento ou imposição da ordem onde surgem indícios de ruptura e de violação dos valores do autoritário conservadorismo popular, como no caso dessa saia curta. Um conservadorismo autodefensivo, é bom que se diga, em face dos efeitos desagregadores da modernização e da transformação social.
Os estudantes entrevistados pela mídia expuseram sua censura conservadora e intolerante à moça e sua censura à própria mídia pela visibilidade que deu à ocorrência, pelo que entendem ser a estigmatização da escola, o que os estigmatizaria como personagens vicários da instituição. A culpa não seria de quem agiu violentamente, mas de quem divulgou a violência, concepção que é outra expressão de intolerância. E todos os grupos que foram para a porta da escola protestar em favor dos direitos da moça foram rechaçados com gritos de "cala a boca" e "cai fora". Resta saber o que pensam os estudantes da Uniban da nudez de solidariedade dos estudantes da UnB, completamente distantes desse mundo operário, refugiados nas ilusões da classe média e de seus privilégios de estudantes de escola pública e gratuita.
Professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Dentre outros livros, autor de A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34)
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