DEU EM O GLOBO
Na semana da pré-estreia momentosa do filme "Lula, o filho do Brasil", recebi uma honrosa proposta de deixar-me biografar. Como intelectual brasileiro sou narcisista; mas lamentavelmente separo o autoamor da cretinice que grassa e assola o jardim onde florescem as nossas celebridades. Entre outras coisas, porque não há político que não se ache intelectual, como não há intelectual que, como um Sartre tropical, não se imagine fazendo - mesmo quando escreve croniquetas apocalípticas e poesia de pé-quebrado - política. Normalmente, o intelectual racionaliza o político (dando um invejável senso de legitimidade filosófica ou jurídica aos seus atos - se todos fazem, por que não eu?) e o político desmonta o intelectual que se vê obrigado a morder a própria língua.
Como tomar parte numa cretina noite de autógrafos de minha biografia, o biografando do meu lado, se minha vida ainda não acabou? Há uma receita do bom senso importante no que diz respeito às homenagens: só se faz estátua, livro ou filme depois que o sujeito bateu as botas. A menos que queiramos transformá-lo em faraó; ou coisa pior.
No liberalismo igualitário, onde um satânico mercado faz com que pessoas, coisas e empresas apareçam e desapareçam, criando um festival de possibilidades de ser e estar, algo repulsivo para quem odeia a competição e o descentramento individualista - o peso da incerteza dentro do razoável; o saque do bem público como crime imperdoável e a distinção pela inteligência -, vale alertar para os riscos do sucesso absoluto.
A tal "unanimidade nacional", embora desejável e aristocrática, é um perigo. O campeão sabe que não pode ser campeão para sempre, senão acaba o esporte. O tigre de dente de sabre fodeu-se (como dizia meu tio Silvio), porque especializou-se em demasia. No topo, viramos trapezistas: um passo em falso nos leva à terra onde a multidão ululante e os bajuladores que nos assassinam com seus projetos infalíveis sentem-se enojados porque caímos.
O velho populismo hierárquico tem como resultado a ligação do "cara" com tudo o que ocorre no sistema. Os sonhos do faraó decifrados por José tinham como base essa ideia. Sendo ocupante de um cargo centralizado que, por isso mesmo, possuía dimensões divinas ou totais, o faraó era responsável pela fartura mas também pela penúria do Egito. O líder carismático descoberto por Max Weber, que felizmente não viu Hitler, mas sentiu o fundamentalismo de Lutero, começa exatamente quando o poder passa a ser associado a dimensões além da política. Ao racismo que tudo hierarquizava dando aos "arianos" (os verdadeiros filhos da Germânia) o direito de eliminar os judeus; ou ao nosso esquerdismo chique que em ano eleitoral casualmente faz a cinebiografia do presidente (e justo porque é presidente), como "o filho do Brasil"! Haja familismo tradicional inconsciente religado a um indiscutível superpoder político. Como sou cagão, como diria o Ziraldo, eu sinto medo.
Mas como a vida é múltipla, eu penso como positiva essa busca de heróis numa sociedade que, pelo seu autoritarismo e o seu viés aristocrático e escravocrata, sempre teve problemas com esses tipos. Realmente, o herói dos escravos não pode ser o mesmo dos senhores; o do povo não pode ser o do político de quem recebe o voto como dádiva para em seguida saqueá-lo.
Na década de 1970, trabalhei esse assunto para descobrir como o personagem do malandro (que tira partido de tudo, e seria honesto só por malandragem!) fazia do Brasil um país complicado relativamente aos limites e à execução das normas que inevitavelmente devem governar uma sociedade que se pretende justa e igual. Tanto isso é verdade que tive meu livro "Carnavais, malandros e heróis" veladamente acusado de reviver o nazi-fascismo quando discutia o problema do herói no contexto do autoritarismo brasileiro.
Contra o herói, citava-se, sem ler ou assistir, Bertolt Brecht dizendo com um dos seus mais tortuosos personagens, o Galileu julgado e acovardado pela Igreja Católica Romana: "Infeliz do país que precisa de heróis!" Vale lembrar que não se trata de um axioma, mas de uma contraposição ao criado Andrea, que afirma o exato oposto: "Infeliz do país que não tem heróis."
O teatro de Brecht é, como o meu livro, marcado por essa desconstrução do indivíduo tido como indiviso mas sendo capaz de desempenhar e usurpar muitos papéis - quase sempre dúbios e contraditórios. Meus argumentos mostram que, num sistema com muitas éticas (ou pontos de vista): da casa ou da rua; dos senhores ou dos escravos; dos carnavais ou dos desfiles militares e procissões, os "heróis" eram diferenciados e incoerentes.
Hoje, uma esquerda que já foi festiva, proibia o proibir e agora está no poder, converge com minhas teorias. Jamais serei o seu herói nas letras ou artes, mas fico feliz ao ver que, inocente e brasileiramente, se busca a pessoa certa, com a biografia certa no cargo mais do que perfeito, para ser o herói brasileiro. Como político e presidente, Lula pode ser discutido e criticado. Pode até mesmo ser demonizado, como ocorreu com FHC. Mas como "filho do Brasil" e herói nacional, ele entra no panteão de Tiradentes, de Antônio Conselheiro e do Padre Cícero. Corre o risco de tornar-se tão intocável quanto foram Hitler, Stalin, Mao e Fidel.
Para uma esquerda que, nas comemorações dos 500 anos do Descobrimento, perguntava o que comemorar, é um grande passo na direção do super-homem. Na tentativa de inventar um personagem que - quando as consciências perdem o rumo, e a bajulação, aliada à vontade de ganhar fama e dinheiro, toma conta - prenuncia o grande ditador que brincava com o mundo como naquele filme de Chaplin.
Roberto Damatta é antropólogo.
Na semana da pré-estreia momentosa do filme "Lula, o filho do Brasil", recebi uma honrosa proposta de deixar-me biografar. Como intelectual brasileiro sou narcisista; mas lamentavelmente separo o autoamor da cretinice que grassa e assola o jardim onde florescem as nossas celebridades. Entre outras coisas, porque não há político que não se ache intelectual, como não há intelectual que, como um Sartre tropical, não se imagine fazendo - mesmo quando escreve croniquetas apocalípticas e poesia de pé-quebrado - política. Normalmente, o intelectual racionaliza o político (dando um invejável senso de legitimidade filosófica ou jurídica aos seus atos - se todos fazem, por que não eu?) e o político desmonta o intelectual que se vê obrigado a morder a própria língua.
Como tomar parte numa cretina noite de autógrafos de minha biografia, o biografando do meu lado, se minha vida ainda não acabou? Há uma receita do bom senso importante no que diz respeito às homenagens: só se faz estátua, livro ou filme depois que o sujeito bateu as botas. A menos que queiramos transformá-lo em faraó; ou coisa pior.
No liberalismo igualitário, onde um satânico mercado faz com que pessoas, coisas e empresas apareçam e desapareçam, criando um festival de possibilidades de ser e estar, algo repulsivo para quem odeia a competição e o descentramento individualista - o peso da incerteza dentro do razoável; o saque do bem público como crime imperdoável e a distinção pela inteligência -, vale alertar para os riscos do sucesso absoluto.
A tal "unanimidade nacional", embora desejável e aristocrática, é um perigo. O campeão sabe que não pode ser campeão para sempre, senão acaba o esporte. O tigre de dente de sabre fodeu-se (como dizia meu tio Silvio), porque especializou-se em demasia. No topo, viramos trapezistas: um passo em falso nos leva à terra onde a multidão ululante e os bajuladores que nos assassinam com seus projetos infalíveis sentem-se enojados porque caímos.
O velho populismo hierárquico tem como resultado a ligação do "cara" com tudo o que ocorre no sistema. Os sonhos do faraó decifrados por José tinham como base essa ideia. Sendo ocupante de um cargo centralizado que, por isso mesmo, possuía dimensões divinas ou totais, o faraó era responsável pela fartura mas também pela penúria do Egito. O líder carismático descoberto por Max Weber, que felizmente não viu Hitler, mas sentiu o fundamentalismo de Lutero, começa exatamente quando o poder passa a ser associado a dimensões além da política. Ao racismo que tudo hierarquizava dando aos "arianos" (os verdadeiros filhos da Germânia) o direito de eliminar os judeus; ou ao nosso esquerdismo chique que em ano eleitoral casualmente faz a cinebiografia do presidente (e justo porque é presidente), como "o filho do Brasil"! Haja familismo tradicional inconsciente religado a um indiscutível superpoder político. Como sou cagão, como diria o Ziraldo, eu sinto medo.
Mas como a vida é múltipla, eu penso como positiva essa busca de heróis numa sociedade que, pelo seu autoritarismo e o seu viés aristocrático e escravocrata, sempre teve problemas com esses tipos. Realmente, o herói dos escravos não pode ser o mesmo dos senhores; o do povo não pode ser o do político de quem recebe o voto como dádiva para em seguida saqueá-lo.
Na década de 1970, trabalhei esse assunto para descobrir como o personagem do malandro (que tira partido de tudo, e seria honesto só por malandragem!) fazia do Brasil um país complicado relativamente aos limites e à execução das normas que inevitavelmente devem governar uma sociedade que se pretende justa e igual. Tanto isso é verdade que tive meu livro "Carnavais, malandros e heróis" veladamente acusado de reviver o nazi-fascismo quando discutia o problema do herói no contexto do autoritarismo brasileiro.
Contra o herói, citava-se, sem ler ou assistir, Bertolt Brecht dizendo com um dos seus mais tortuosos personagens, o Galileu julgado e acovardado pela Igreja Católica Romana: "Infeliz do país que precisa de heróis!" Vale lembrar que não se trata de um axioma, mas de uma contraposição ao criado Andrea, que afirma o exato oposto: "Infeliz do país que não tem heróis."
O teatro de Brecht é, como o meu livro, marcado por essa desconstrução do indivíduo tido como indiviso mas sendo capaz de desempenhar e usurpar muitos papéis - quase sempre dúbios e contraditórios. Meus argumentos mostram que, num sistema com muitas éticas (ou pontos de vista): da casa ou da rua; dos senhores ou dos escravos; dos carnavais ou dos desfiles militares e procissões, os "heróis" eram diferenciados e incoerentes.
Hoje, uma esquerda que já foi festiva, proibia o proibir e agora está no poder, converge com minhas teorias. Jamais serei o seu herói nas letras ou artes, mas fico feliz ao ver que, inocente e brasileiramente, se busca a pessoa certa, com a biografia certa no cargo mais do que perfeito, para ser o herói brasileiro. Como político e presidente, Lula pode ser discutido e criticado. Pode até mesmo ser demonizado, como ocorreu com FHC. Mas como "filho do Brasil" e herói nacional, ele entra no panteão de Tiradentes, de Antônio Conselheiro e do Padre Cícero. Corre o risco de tornar-se tão intocável quanto foram Hitler, Stalin, Mao e Fidel.
Para uma esquerda que, nas comemorações dos 500 anos do Descobrimento, perguntava o que comemorar, é um grande passo na direção do super-homem. Na tentativa de inventar um personagem que - quando as consciências perdem o rumo, e a bajulação, aliada à vontade de ganhar fama e dinheiro, toma conta - prenuncia o grande ditador que brincava com o mundo como naquele filme de Chaplin.
Roberto Damatta é antropólogo.
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