DEU NO VALOR ECONÔMICO
Tornou-se um lugar comum mencionar o carisma do presidente Luiz Inácio Lula da Silva como um de seus atributos. Por alguns esse carisma é invocado como um indicativo de sua condição de líder inaudito ("nunca antes na história deste país" teria havido um político tão fantástico), por outros é tomado de forma valorativamente invertida, como uma justificativa para o apoio de que goza junto a amplos segmentos da população brasileira - sobretudo aqueles mais pobres e pouco instruídos. Para os primeiros, o carisma seria o fruto da condição historicamente singular de Lula - um autêntico "filho do Brasil", saído da pobreza extrema e migrado, ainda criança, num pau-de-arara do Nordeste para São Paulo. Para os segundos, o carisma seria fruto da manipulação demagógica e a principal causa pela qual o presidente consegue passar ao léu de todas as mazelas que atingem seu governo e, particularmente, seus acólitos - o assim chamado "efeito Teflon".
É muito difícil mensurar o carisma. Ele é uma característica de certas lideranças que se pode com muito mais facilidade perceber do que descrever. Mas é possível definir a importância que o carisma tem para a emergência e a manutenção de líderes. No caso de Lula, essa não é uma característica nova e nem mesmo construída por obra do marketing político mais sofisticado que lhe acompanhou nas últimas duas eleições. Ela é perceptível já no líder sindical atuante nas grandes greves do ocaso do regime autoritário, em fins dos anos 70. Para quem quiser checar isto vale assistir ao primoroso documentário de Leon Hirszman, "O ABC da Greve". Fica muito nítida ali a ascendência que o jovem e realista Lula tinha sobre sua base, logrando até mesmo o feito de convencer a assembléia a aceitar uma derrota, encerrando a greve, para sair dali aclamado e carregado por seus "companheiros". São poucas as lideranças políticas que possuem tal destreza.
A definição clássica da legitimidade baseada no carisma foi dada pelo sociólogo alemão Max Weber. Para ele, a dominação carismática se dá "em virtude de devoção afetiva à pessoa do senhor e a seus dotes sobrenaturais (carisma) e, particularmente, a faculdades mágicas, revelações ou heroísmo, poder intelectual ou de oratória. O sempre novo, o extracotidiano, o inaudito e o arrebatamento emotivo que provocam constituem aqui a fonte da devoção pessoal. Seus tipos mais puros são a dominação do profeta, do herói guerreiro e do grande demagogo. (...) O tipo que manda é o líder. O tipo que obedece é o ´apóstolo´. Obedece-se exclusivamente à pessoa do líder por suas qualidades excepcionais e não em virtude de sua posição estatuída ou de sua dignidade tradicional; e, portanto, também somente enquanto essas qualidades lhe são atribuídas, ou seja, enquanto seu carisma subsiste. Por outro lado, quando é ´abandonado´ pelo seu deus ou quando decaem sua força heróica ou a fé dos que crêem em suas qualidades de líder, então seu domínio também se torna caduco." ("Os três tipos puros de dominação legítima").
Fica claro nessa definição que o carisma não é uma característica objetivamente observável no líder, como se fosse um traço de seu código genético verificável em laboratório. O carisma é fruto da percepção que muitos têm acerca do líder. Evidentemente, tal percepção não ocorre sem motivos: há atributos que, sendo valorizados ou impressionando as pessoas (ou ambas as coisas juntas), levam-nas a identificar no líder alguém dotado de capacidades extraordinárias. No caso de Lula, certamente sua história - que de fato nada tem de ordinária num país desigual e hierárquico como o Brasil - contribui para a construção do mito e, consequentemente, outorga-lhe carisma. Também sua capacidade oratória contribui para isto - desde o tempo das assembléias de Vila Euclides. Para outros, o trunfo advém de charme, beleza ou estilo.
Todavia, a força do presidente e seu potencial eleitoral não decorrem apenas dessa avaliação pessoal que a população faz do líder. Há uma avaliação positiva de seu governo que, ao mesmo tempo que reforça o carisma presidencial, é reforçada por ele. A última pesquisa Ibope dá alguns dados interessantes a este respeito: 72% dos eleitores consideram o governo bom ou ótimo e 83% aprovam a maneira como o presidente governa; aqui o carisma leva certa vantagem sobre o governo propriamente dito. E o interessante é que esses dados, embora variem de acordo com a região do país, renda e escolaridade, sempre dão vantagem a Lula e seu governo.
Para se ter uma idéia, entre os brasileiros de nível superior, aqueles junto aos quais Lula enfrenta maior resistência, a avaliação positiva do governo é da ordem de 64% e a do presidente de 75%. Nesse segmento, apenas 7% do eleitorado avalia o governo como ruim ou péssimo, embora um número bem maior, 23%, desaprovem a forma como Lula governa. Temos aí uma indicação de que, para estes, o carisma de ex-operário e a retórica popular contam bem menos que o resultado objetivo das políticas. Mas há também o estranhamento (ou preconceito) de extração social. Já entre os menos instruídos, que são também os mais pobres e numerosos, a desaprovação do governo é igualmente baixa: apenas 5%. Mas também é diminuta a desaprovação do presidente: apenas 9%. Aqui o carisma (assim como a identificação de extração social) pesa mais, embora não suplante a avaliação objetiva que se faz dos resultados.
Indo ao que importa: embora o carisma seja um trunfo inegável, o peso que Lula jogará na eleição de 2010 terá menos a ver com ele pessoalmente do que com a apreciação que o grosso do eleitorado faz de seu governo e, consequentemente, do que significaria a sua continuidade. E, neste campo, a vantagem de saída da candidata situacionista é imensa. Seu grande obstáculo nas pesquisas atuais é - muito mais do que o pouco carisma - o desconhecimento. Como mostra o Ibope, nada menos que 66% do eleitorado diz não conhecer ou conhecer precariamente a candidata situacionista. Para Serra, o desconhecimento é de apenas 30%. E se o "dar a conhecer" de Dilma ocorrer por meio de sua vinculação com o governo Lula, a oposição terá uma dura disputa pela frente em 2010 - sobretudo porque Serra tem pouco de novo a oferecer, de modo que seu crescimento tende a ser, em princípio, mais limitado. Ou seja, já ser muito conhecido é ao mesmo tempo um trunfo e uma limitação. Talvez novidades possam ocorrer na eventualidade de uma candidatura Aécio Neves. Em primeiro lugar porque ele ainda é desconhecido para 69% do eleitorado; em segundo lugar porque parece dispor de muito mais carisma do que Serra e Dilma. Portanto, não se tomem os números atuais da intenção de voto por seu valor de face.
Eles estão claramente subestimados perante o que poderá acontecer depois que a campanha realmente começar, com o horário eleitoral gratuito.
Cláudio Gonçalves Couto é centista político, professor da PUC-SP e da FGV-SP. A titular da coluna, Maria Inês Nassif, está em férias
Tornou-se um lugar comum mencionar o carisma do presidente Luiz Inácio Lula da Silva como um de seus atributos. Por alguns esse carisma é invocado como um indicativo de sua condição de líder inaudito ("nunca antes na história deste país" teria havido um político tão fantástico), por outros é tomado de forma valorativamente invertida, como uma justificativa para o apoio de que goza junto a amplos segmentos da população brasileira - sobretudo aqueles mais pobres e pouco instruídos. Para os primeiros, o carisma seria o fruto da condição historicamente singular de Lula - um autêntico "filho do Brasil", saído da pobreza extrema e migrado, ainda criança, num pau-de-arara do Nordeste para São Paulo. Para os segundos, o carisma seria fruto da manipulação demagógica e a principal causa pela qual o presidente consegue passar ao léu de todas as mazelas que atingem seu governo e, particularmente, seus acólitos - o assim chamado "efeito Teflon".
É muito difícil mensurar o carisma. Ele é uma característica de certas lideranças que se pode com muito mais facilidade perceber do que descrever. Mas é possível definir a importância que o carisma tem para a emergência e a manutenção de líderes. No caso de Lula, essa não é uma característica nova e nem mesmo construída por obra do marketing político mais sofisticado que lhe acompanhou nas últimas duas eleições. Ela é perceptível já no líder sindical atuante nas grandes greves do ocaso do regime autoritário, em fins dos anos 70. Para quem quiser checar isto vale assistir ao primoroso documentário de Leon Hirszman, "O ABC da Greve". Fica muito nítida ali a ascendência que o jovem e realista Lula tinha sobre sua base, logrando até mesmo o feito de convencer a assembléia a aceitar uma derrota, encerrando a greve, para sair dali aclamado e carregado por seus "companheiros". São poucas as lideranças políticas que possuem tal destreza.
A definição clássica da legitimidade baseada no carisma foi dada pelo sociólogo alemão Max Weber. Para ele, a dominação carismática se dá "em virtude de devoção afetiva à pessoa do senhor e a seus dotes sobrenaturais (carisma) e, particularmente, a faculdades mágicas, revelações ou heroísmo, poder intelectual ou de oratória. O sempre novo, o extracotidiano, o inaudito e o arrebatamento emotivo que provocam constituem aqui a fonte da devoção pessoal. Seus tipos mais puros são a dominação do profeta, do herói guerreiro e do grande demagogo. (...) O tipo que manda é o líder. O tipo que obedece é o ´apóstolo´. Obedece-se exclusivamente à pessoa do líder por suas qualidades excepcionais e não em virtude de sua posição estatuída ou de sua dignidade tradicional; e, portanto, também somente enquanto essas qualidades lhe são atribuídas, ou seja, enquanto seu carisma subsiste. Por outro lado, quando é ´abandonado´ pelo seu deus ou quando decaem sua força heróica ou a fé dos que crêem em suas qualidades de líder, então seu domínio também se torna caduco." ("Os três tipos puros de dominação legítima").
Fica claro nessa definição que o carisma não é uma característica objetivamente observável no líder, como se fosse um traço de seu código genético verificável em laboratório. O carisma é fruto da percepção que muitos têm acerca do líder. Evidentemente, tal percepção não ocorre sem motivos: há atributos que, sendo valorizados ou impressionando as pessoas (ou ambas as coisas juntas), levam-nas a identificar no líder alguém dotado de capacidades extraordinárias. No caso de Lula, certamente sua história - que de fato nada tem de ordinária num país desigual e hierárquico como o Brasil - contribui para a construção do mito e, consequentemente, outorga-lhe carisma. Também sua capacidade oratória contribui para isto - desde o tempo das assembléias de Vila Euclides. Para outros, o trunfo advém de charme, beleza ou estilo.
Todavia, a força do presidente e seu potencial eleitoral não decorrem apenas dessa avaliação pessoal que a população faz do líder. Há uma avaliação positiva de seu governo que, ao mesmo tempo que reforça o carisma presidencial, é reforçada por ele. A última pesquisa Ibope dá alguns dados interessantes a este respeito: 72% dos eleitores consideram o governo bom ou ótimo e 83% aprovam a maneira como o presidente governa; aqui o carisma leva certa vantagem sobre o governo propriamente dito. E o interessante é que esses dados, embora variem de acordo com a região do país, renda e escolaridade, sempre dão vantagem a Lula e seu governo.
Para se ter uma idéia, entre os brasileiros de nível superior, aqueles junto aos quais Lula enfrenta maior resistência, a avaliação positiva do governo é da ordem de 64% e a do presidente de 75%. Nesse segmento, apenas 7% do eleitorado avalia o governo como ruim ou péssimo, embora um número bem maior, 23%, desaprovem a forma como Lula governa. Temos aí uma indicação de que, para estes, o carisma de ex-operário e a retórica popular contam bem menos que o resultado objetivo das políticas. Mas há também o estranhamento (ou preconceito) de extração social. Já entre os menos instruídos, que são também os mais pobres e numerosos, a desaprovação do governo é igualmente baixa: apenas 5%. Mas também é diminuta a desaprovação do presidente: apenas 9%. Aqui o carisma (assim como a identificação de extração social) pesa mais, embora não suplante a avaliação objetiva que se faz dos resultados.
Indo ao que importa: embora o carisma seja um trunfo inegável, o peso que Lula jogará na eleição de 2010 terá menos a ver com ele pessoalmente do que com a apreciação que o grosso do eleitorado faz de seu governo e, consequentemente, do que significaria a sua continuidade. E, neste campo, a vantagem de saída da candidata situacionista é imensa. Seu grande obstáculo nas pesquisas atuais é - muito mais do que o pouco carisma - o desconhecimento. Como mostra o Ibope, nada menos que 66% do eleitorado diz não conhecer ou conhecer precariamente a candidata situacionista. Para Serra, o desconhecimento é de apenas 30%. E se o "dar a conhecer" de Dilma ocorrer por meio de sua vinculação com o governo Lula, a oposição terá uma dura disputa pela frente em 2010 - sobretudo porque Serra tem pouco de novo a oferecer, de modo que seu crescimento tende a ser, em princípio, mais limitado. Ou seja, já ser muito conhecido é ao mesmo tempo um trunfo e uma limitação. Talvez novidades possam ocorrer na eventualidade de uma candidatura Aécio Neves. Em primeiro lugar porque ele ainda é desconhecido para 69% do eleitorado; em segundo lugar porque parece dispor de muito mais carisma do que Serra e Dilma. Portanto, não se tomem os números atuais da intenção de voto por seu valor de face.
Eles estão claramente subestimados perante o que poderá acontecer depois que a campanha realmente começar, com o horário eleitoral gratuito.
Cláudio Gonçalves Couto é centista político, professor da PUC-SP e da FGV-SP. A titular da coluna, Maria Inês Nassif, está em férias
Um comentário:
Oi, professor. Eu vi o documentário Charisma In Politics no GNT nessa quinta. Dispensa comentários. Como eu poderia conseguir esse material para trabalhar na aula de linguística da UNEB - BA
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