DEU NA FOLHA DE S. PAULO
O que o governo britânico faz ao taxar os bônus ganhos pelos financistas não é nada mais do que a sua obrigação
A leitura do sisudo "Financial Times" do dia 10 estava até engraçada. Sua manchete de primeira página era "Fúria dos banqueiros com o superimposto sobre os bônus". A fúria refere-se ao imposto de 50% sobre todos os bônus obtidos por financistas acima do ganho anual de 25 mil libras que foi anunciado pelo ministro das Finanças do Reino Unido, Alistair Darling.
Fiquei curioso em saber como se manifestaria na prática a fúria ou o ódio desses senhores que não são apenas dirigentes de bancos; são principalmente operadores financeiros ("traders") que ganham bônus. Eles dominaram o mundo durante 30 anos, definiram as regras da "nova" racionalidade econômica baseada no velho "laissez-faire", enriqueceram-se e tornaram ainda mais ricos os rentistas a quem estavam associados, provocaram um enorme aumento da desigualdade em toda parte, aumentaram a instabilidade financeira mundial e, afinal, provocaram a crise global de 2008, que obrigou os governos a gastarem cerca de 5% do PIB mundial para salvá-los.
A decisão do governo britânico foi surpreendente, porque até há pouco era esse governo e o dos Estados Unidos que mais resistiam à pressão dos demais países ricos, principalmente os demais países da União Europeia, para que o sistema financeiro fosse mais fortemente regulado, e os bônus dos financistas, taxados. Resistiam porque Londres e Nova York são os dois maiores centros financeiros do mundo e medidas restritivas a suas atividades poderiam promover a migração do sistema financeiro para outras praças.
Essa preocupação é legítima e salienta a necessidade de coordenação das ações regulatórias entre as maiores economias mundiais. Está claro, porém, que essa cooperação existirá. Haverá sempre aqueles tentados a agir como caronas ("free riders"), mas os demais países dispõem de poder suficiente para neutralizá-los. O que definitivamente não é razoável é deixar de regular o sistema com a desculpa de que não haverá cooperação internacional; é manter incentivos para que um grupo relativamente grande de jovens e brilhantes profissionais ou tecnoburocratas formados nas melhores universidades inventem inovações financeiras que dão lucro aos rentistas e bônus para eles próprios, mas prejudicam os demais; é permitir que adotem práticas arriscadas que levam os países à crise e obrigam seus governos a gastar bilhões e bilhões dos contribuintes para salvar suas economias de crise sistêmica.
Vivemos no capitalismo do conhecimento ou no capitalismo tecnoburocrático -um tipo de capitalismo caracterizado por cooperação e conflito entre a velha classe capitalista e a relativamente nova classe profissional ou tecnoburocrática. Sei que os membros da nova classe terão uma participação crescente na renda do país porque detêm o monopólio do conhecimento técnico, organizacional e financeiro. Mas isso não significa que devamos deixá-los livres para agir como quiserem.
As sociedades modernas se caracterizam por um sistema econômico flexível e dinâmico -o capitalismo tecnoburocrático- que lembra um tigre e que, por isso mesmo, é cego à justiça e à ordem ou à estabilidade e por um sistema político -o Estado democrático- que tem o papel de regular ou domar esse perigoso mas insubstituível animal. O que o governo britânico está fazendo é apenas isso. Nada mais do que a sua obrigação. Os financistas podem ficar furiosos; mais indignados estão os cidadãos que foram prejudicados por sua irresponsabilidade e cobram agora dos governos as medidas regulatórias necessárias.
Luiz Carlos Bresser-Pereira, 75, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado (primeiro governo FHC) e da Ciência e Tecnologia (segundo governo FHC), é autor de "Globalização e Competição
O que o governo britânico faz ao taxar os bônus ganhos pelos financistas não é nada mais do que a sua obrigação
A leitura do sisudo "Financial Times" do dia 10 estava até engraçada. Sua manchete de primeira página era "Fúria dos banqueiros com o superimposto sobre os bônus". A fúria refere-se ao imposto de 50% sobre todos os bônus obtidos por financistas acima do ganho anual de 25 mil libras que foi anunciado pelo ministro das Finanças do Reino Unido, Alistair Darling.
Fiquei curioso em saber como se manifestaria na prática a fúria ou o ódio desses senhores que não são apenas dirigentes de bancos; são principalmente operadores financeiros ("traders") que ganham bônus. Eles dominaram o mundo durante 30 anos, definiram as regras da "nova" racionalidade econômica baseada no velho "laissez-faire", enriqueceram-se e tornaram ainda mais ricos os rentistas a quem estavam associados, provocaram um enorme aumento da desigualdade em toda parte, aumentaram a instabilidade financeira mundial e, afinal, provocaram a crise global de 2008, que obrigou os governos a gastarem cerca de 5% do PIB mundial para salvá-los.
A decisão do governo britânico foi surpreendente, porque até há pouco era esse governo e o dos Estados Unidos que mais resistiam à pressão dos demais países ricos, principalmente os demais países da União Europeia, para que o sistema financeiro fosse mais fortemente regulado, e os bônus dos financistas, taxados. Resistiam porque Londres e Nova York são os dois maiores centros financeiros do mundo e medidas restritivas a suas atividades poderiam promover a migração do sistema financeiro para outras praças.
Essa preocupação é legítima e salienta a necessidade de coordenação das ações regulatórias entre as maiores economias mundiais. Está claro, porém, que essa cooperação existirá. Haverá sempre aqueles tentados a agir como caronas ("free riders"), mas os demais países dispõem de poder suficiente para neutralizá-los. O que definitivamente não é razoável é deixar de regular o sistema com a desculpa de que não haverá cooperação internacional; é manter incentivos para que um grupo relativamente grande de jovens e brilhantes profissionais ou tecnoburocratas formados nas melhores universidades inventem inovações financeiras que dão lucro aos rentistas e bônus para eles próprios, mas prejudicam os demais; é permitir que adotem práticas arriscadas que levam os países à crise e obrigam seus governos a gastar bilhões e bilhões dos contribuintes para salvar suas economias de crise sistêmica.
Vivemos no capitalismo do conhecimento ou no capitalismo tecnoburocrático -um tipo de capitalismo caracterizado por cooperação e conflito entre a velha classe capitalista e a relativamente nova classe profissional ou tecnoburocrática. Sei que os membros da nova classe terão uma participação crescente na renda do país porque detêm o monopólio do conhecimento técnico, organizacional e financeiro. Mas isso não significa que devamos deixá-los livres para agir como quiserem.
As sociedades modernas se caracterizam por um sistema econômico flexível e dinâmico -o capitalismo tecnoburocrático- que lembra um tigre e que, por isso mesmo, é cego à justiça e à ordem ou à estabilidade e por um sistema político -o Estado democrático- que tem o papel de regular ou domar esse perigoso mas insubstituível animal. O que o governo britânico está fazendo é apenas isso. Nada mais do que a sua obrigação. Os financistas podem ficar furiosos; mais indignados estão os cidadãos que foram prejudicados por sua irresponsabilidade e cobram agora dos governos as medidas regulatórias necessárias.
Luiz Carlos Bresser-Pereira, 75, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado (primeiro governo FHC) e da Ciência e Tecnologia (segundo governo FHC), é autor de "Globalização e Competição
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