sexta-feira, 6 de março de 2009

Tocando violino

Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


É conhecida a máxima política que diz que governar é como tocar violino: a gente pega com a esquerda e toca com a direita. Radomiro Tomic, líder da ala mais progressista e um dos fundadores da Democracia Cristã chilena nos anos 60 e 70, dizia que "quando a esquerda se alia com a direita, é esta quem governa". É o que está acontecendo na prática no governo Lula, cuja coligação partidária tem hoje a clara liderança do PMDB, em detrimento da influência política do PT. O PMDB, que esteve envolvido apenas perifericamente no escândalo do mensalão porque não tinha tanto poder como hoje no primeiro governo Lula, criou seu próprio modelo de exercício do poder e cada vez mais se impõe, como mostram os acordos políticos que fechou para a eleição do senador José Sarney à presidência do Senado e que culminaram com partidos como o PTB e o PR recebendo comissões importantes no Senado sem que o PT pudesse evitar.

De certa maneira, o PMDB está liderando uma revolta interna dentro da base aliada do governo que só não resultará em uma candidatura própria porque o partido não tem um nome popular para apresentar.

O ex-deputado Roberto Jefferson dizia, na época do mensalão, que o chamado núcleo duro do governo identificava nos partidos aliados uma "burguesia corrupta, legendas prostitutas, que se alugam", e tinha razão.

Foi esse estado de espírito petista que impediu que fosse feito acordo com o PMDB no primeiro Ministério, partido repudiado pelo próprio Lula, e que mais tarde resultaria no mensalão, supostamente uma maneira de se obter maioria congressual sem ter que dividir o poder de fato com as "legendas-prostitutas".

O PMDB saiu da eleição de 2006 com força política renovada, e consolidou-se nas eleições municipais do ano passado, tornando-se o centro da coalizão governamental, dominando as duas Casas do Congresso.

Lula, desde que se descolou do petismo para viver a experiência única do lulismo, de ser um líder político acima dos partidos, com recorde de popularidade nunca antes registrado, descobriu também que apenas precisa manter o PMDB dentro de seu governo, aceitando todas as suas exigências, para ter condições de eleger seu sucessor.

E só por um resquício de pudor escolheu dentro dos quadros petistas a candidata na ministra Dilma Rousseff, mesmo sendo ela uma inexperiente na arte de colher votos e uma novata no petismo, vinda do PDT de Brizola.

Como o petismo não tem candidato relevante, embora a popularidade de Lula pudesse alavancar qualquer candidatura, por mais pesada que fosse, ele escolheu símbolos: uma mulher e o PAC, o programa de obras públicas que não existe, mas é um achado de marketing, ainda mais em tempos de crise econômica.

O investimento do governo federal não cresceu nada com a criação do PAC, continua na base de 1% do PIB, mas havia a previsão de que a iniciativa privada retomaria seus investimentos diante do crescimento da economia brasileira. Com o advento da crise, essa premissa já não existe mais, mas o PAC permanece como eficiente propaganda do governo, que inaugura mais pedras fundamentais do que obras verdadeiras, vende expectativas de empregos e desenvolvimento.

O presidente Lula está, a esta altura de seu mandato, pouco se lixando se o PT vem sendo passado para trás dentro da coligação governamental, desde que a coligação se mantenha unida.

Se Dilma não deslanchar como candidata à Presidência, poderá ser substituída por outro petista, ou poderá mesmo vingar a tese do deputado Ciro Gomes, que voltou à cena política reivindicando um papel na sucessão, mesmo sendo subsidiário. Confiante em que tem um recall político que vale de 15 a 20 pontos para começar nas pesquisas, Ciro só não quer que Lula escolha Dilma como sua única candidata oficial.

Se houver mais de um candidato governista na disputa, são maiores as chances de um deles ganhar, raciocina Ciro, para quem Lula não teria vencido no segundo turno em 2002 se ele e Garotinho não estivessem no páreo.

O problema é que Lula sabe que, se abrir a porteira, Dilma será "cristianizada" na primeira curva da corrida presidencial, pois não tem nem apoio político dentro dos partidos aliados, nem experiência eleitoral para ser colocada na raia sem a chancela de ser a única candidata do presidente.

O apoio a esse projeto ficará cada vez mais caro, e já começam a surgir setores importantes do próprio PT, como o ex-ministro José Dirceu, que admitem que a ministra Dilma possa não ser mesmo a única candidata governista.

Mas há momentos em que Lula fica tentado a tocar violino com a mão esquerda. Mesmo tendo uma base partidária com forte representação de centro-direita, a crise econômica internacional está levando a oratória do governo Lula cada vez mais para a esquerda, na ilusão de que a maior atuação dos governos nos Estados Unidos e na Europa pode significar uma tendência socializante no mundo.

Ontem, ele deu um passo a mais nessa direção defendendo a estatização dos bancos em dificuldades e o papel fundamental dos governos para a recuperação da economia mundial. Cada vez que se fala em estatização dos bancos, as bolsas mundiais despencam.

O próprio presidente Barack Obama, considerado pelos republicanos como um socialista, descarta essa possibilidade. E os governos europeus que estatizam os bancos se apressam em avisar que eles serão privatizados assim que saneados.

Há uma distância enorme entre a base conservadora e de direita que apoia pragmaticamente o governo Lula, e um programa de governo socializante. A nível internacional, a cada passo que coloque Lula mais perto de Hugo Chávez ou Evo Morales, mais seu prestígio perderá força.

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