sábado, 6 de fevereiro de 2010

Miguel Reale Júnior::Sob o prisma da escravidão

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Este é o ano Joaquim Nabuco, centenário de sua morte. Dedicou-se ele com ardor pelo fim da escravidão. É espantoso, mas apenas em 1879 começou a campanha abolicionista visando à emancipação plena dos escravos. Com 30 anos, deputado por Pernambuco, Nabuco, ao lado de 14 parlamentares, lançou a campanha pela abolição e fundou a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão.

Antes apenas houvera manifestações individuais em favor da erradicação da escravatura, como a dos Andradas na Assembleia Constituinte de 1823. José Bonifácio passara, após a independência, a pensar num projeto de nação sem escravidão e sem a degeneração moral dela decorrente, propondo também medidas de assistência aos escravos após libertos. Para o Patriarca, não poderia haver "uma Constituição liberal e duradoura num país continuamente habitado por uma multidão de escravos".

Em 1831, na Regência de Feijó, instituíra-se, por pressão da Inglaterra, lei pela qual o africano introduzido no País a partir de então seria livre. A lei não "pegou" e surgiu a expressão "para inglês ver", pois mais de 1 milhão de negros foram trazidos da África até o tráfico ser suprimido, em 1850. As medidas contra a escravatura cingiam-se a limitar a gangrena, não a eliminá-la, como dizia Nabuco, pois a Lei do Ventre Livre libertava os filhos de escravos nascidos após setembro de 1871, mas tão só ao completarem 21 anos.

Nabuco não foi reeleito em 1881. Residindo em Londres, continuava a luta pela libertação dos escravos em contato contínuo com a Anti-Slavery Society na capital inglesa. Escreveu, em Londres, O Abolicionismo, que, nos termos atuais, revela-se uma verdadeira história cultural do social, a mostrar como a sociedade brasileira de então representava a Nação e a si mesma pelo prisma da escravidão. Esta moldara a psicologia coletiva do País, infundindo uma forma de vida, de sentimentos, de valores, em suma, uma estrutura mental a penetrar em todos os ramos de atividade, da economia à religião. A escravidão não era apenas uma conveniência econômica, era um modo de compreensão da existência.

Por isso, escrevia em O Abolicionismo: "O nosso caráter, o nosso temperamento, a nossa organização toda, física, intelectual e moral, acha-se terrivelmente afetada pelas influências com que a escravidão passou 300 anos a permear a sociedade brasileira."

Este permear inteiramente a sociedade levou à adoção da escravidão pela própria Igreja, que negava na prática cotidiana o valor da caridade, pois conventos e todo o clero secular tinham escravos e estes viam no sacerdote "senão um homem que os podia comprar".

A escravidão contaminava de imediato os estrangeiros aqui residentes. Conforme Nabuco, os europeus estabelecidos no País em grande proporção possuíam escravos ou não acreditavam num Brasil sem escravos e temiam pelos seus interesses.

O atraso do Brasil no século 19 encontra forte explicação na escravidão. Para Nabuco, esta "não consente, em parte alguma, classes operárias propriamente ditas, nem é compatível com o regime do salário e a dignidade pessoal do artífice". De outra parte, escravidão e indústria são inconciliáveis, de vez que a escravidão sufocava a força motora da indústria, "a iniciativa, a invenção, a energia individual", bem como os elementos de que ela precisa, como "a associação de capitais, a educação técnica dos operários, a confiança no futuro".

Assinalou Nabuco, em outra obra exemplar, Minha Formação, que na campanha abolicionista a principal arma estava na "ação motora dos espíritos que criavam a opinião pela ideia, pela palavra, pelo sentimento". Era necessário, portanto, envolver a sociedade contra a escravidão para assim atuar sobre o Parlamento. O livro O Abolicionismo foi, então, obra que visava a ser uma arma de combate na denúncia da podridão da escravatura e no chamamento à luta pela sua abolição.

Ali descreve Nabuco, com todas as letras, em que consistia a escravidão, aceita por todas as classes sociais como natural disposição plena do outro, sobre o qual era permitido fazer de tudo, menos matar. Em comovente passagem, retrata o escravo como "o órfão do destino, esse enjeitado da humanidade, que antes de nascer estremece sob o chicote vibrado nas costas da mãe (...) e cresce no meio da abjeção da sua classe, corrompido, desmoralizado, embrutecido pela vida da senzala, que aprende a não levantar os olhos para o senhor, (...) condenado a não possuir a si mesmo inteiramente uma hora só na vida". Ao senhor tudo era permitido.

Esta fruição de alguém a seu bel-prazer, dispondo inteiramente de sua vida, do nascer ao morrer, só poderia levar à insensibilidade moral denunciada por Nabuco, que atribuía à escravidão a "destruição de todos os princípios e fundamentos da moralidade religiosa ou positiva - a família, a propriedade, a solidariedade social, a aspiração humanitária".

Para Nabuco, não só a raça negra não era uma raça inferior, como constituía um elemento de considerável importância nacional, parte integrante do povo brasileiro, pois onde havia algo construído lá se contara com o esforço dos africanos ou de seus descendentes.

A responsabilidade pela escravidão era de todos os que a consentiam. Nabuco conclamou os brasileiros à luta em favor da abolição, buscando que viesse a ser consagrada em lei, o que só ocorreu dez anos depois do início da campanha abolicionista. Deu-se fim à escravidão, mas os negros continuaram presos à discriminação, à pobreza, à falta de condições de ascender na sociedade.

O centenário de morte de Nabuco é uma boa oportunidade de se examinar em que medida ainda atuam sequelas da escravidão no comportamento do brasileiro, ao aceitar a normalidade da corrupção, os privilégios, o desrespeito à lei, ou ao se recorrer, como frisou Roberto Da Matta, ao "sabe com quem está falando?".

Miguel Reale Júnior, advogado, professor titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça

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