sábado, 6 de fevereiro de 2010

A nova classe média::Merval Pereira

DEU EM O GLOBO

No discurso que fez ler em Davos, ao receber o prêmio de Estadista Global, o presidente Lula elencou entre os muitos autoelogios aos seus sete anos de governo a inclusão de 31 milhões de cidadãos na classe média, e a retirada de outros 20 milhões da linha de miséria absoluta.

Embora não seja uma situação restrita ao Brasil — pois a redução da pobreza nos países emergentes, e consequente aumento da classe média, faz até com que um estudo da Goldman Sachs preveja a explosão da classe média mundial até 2030, abrangendo nada menos que dois bilhões de pessoas, ou 30% da população mundial —, este é “um dos fenômenos sociais e econômicos mais importantes da história recente”, na definição dos cientistas políticos Amaury de Souza e Bolívar Lamounier. Eles são os autores do recém-lançado livro “A Classe Média Brasileira: Ambições, valores e projetos de sociedade”.

Os autores consideram que “parecem estar se repetindo, em escala ampliada, os processos que levaram, mais de um século atrás, ao surgimento da classe média dos países mais industrializados”.

Entre os fatores que deflagraram esse processo, os autores destacam “a extraordinária prosperidade da economia mundial nos 20 anos que antecederam a crise de 20082009”, que contribuiu para reduzir a desigualdade de renda em países como a China, Índia e Brasil e, dessa forma, abriu espaço para a mobilidade social de grandes contingentes, formando o que se tem denominado “nova classe média”, onde, coexistindo com a classe média tradicional A/B “e adquirindo hábitos semelhantes, observa-se cada vez mais a presença de indivíduos e famílias provenientes da chamada classe C”.

O Brasil é parte expressiva desse megaprocesso de mobilidade social, mas os autores questionam “a sustentabilidade desse gigantesco movimento de ascensão social” nos termos em que ele está se processando no país.

Eles admitem que o crescimento da classe média e de seu poder de compra ajuda a expansão do mercado consumidor, “além de firmar padrões e tendências de consumo com poder de irradiação para o restante da sociedade”.

E esse crescimento da parcela que aufere a renda média da sociedade foi de 22,8% entre 2004 e 2008, “em larga medida pelo aumento da oferta de empregos formais e concomitante aumento da renda do trabalho”. Baseado em amplas pesquisas, quantitativas e qualitativas, em diversas regiões do Brasil, o livro “busca definir uma classe média num país onde as diferenças estão sendo diluídas pela difusão do consumo”.

O quadro que resultou das pesquisas é definido pelos autores como o de um país “extraordinariamente dinâmico, sem barreiras para o consumo, e no qual todos os indivíduos querem adotar os padrões da classe acima”. Mas como vão gerar a renda necessária para sustentar tais padrões?, perguntam os autores.

O economista Marcelo Neri, coordenador da pesquisa da Fundação Getulio Vargas, do Rio, que revelou o crescimento da classe média brasileira, que hoje já abrange 52% da população economicamente ativa, montou dois índices para avaliar o comportamento dessa nova classe média.

O primeiro, de potencial de consumo baseado em acesso a bens duráveis, a serviços públicos e moradia, e o segundo sobre o lado do produtor, onde é identificado o potencial de geração de renda familiar de forma a captar a sustentabilidade das rendas percebidas através de inserção produtiva e nível educacional de diferentes membros do domicílio, investimentos em capital físico (previdência pública e privada; uso de tecnologia de informação e comunicação), capital social (sindicatos; estrutura familiar) e capital humano (frequência dos filhos em escolas públicas e privadas) etc.

Ele admite que foi “com surpresa” que chegaram à conclusão de que o índice do consumidor aumentou 14,98% entre 2003 e 2008, contra 28,62% do índice do produtor.

Neri avalia com bom humor: “O brasileiro pode ser na foto ainda mais cigarra que formiga, mas estamos sofrendo gradual metamorfose em direção às formigas”.

Para reforçar seu otimismo, ele analisa que “se olharmos para o Nordeste o ganho de renda do trabalho per capita real médio do período 2003 a 2008 foi de 7,3% ao ano, o que contraria a ideia de que o aumento de renda do brasileiro em geral, e do nordestino em particular, deve-se apenas ao “assistencialismo oficial”.

O livro, no entanto, contém pesquisas que revelam ser alta, “por qualquer critério”, a proporção da classe média que teme perder o padrão de vida atual, ou não ter dinheiro suficiente para se aposentar. Segundo os autores, ver-se privado de renda pela falta de trabalho, perda do emprego ou liquidação do negócio próprio “é a preocupação dominante dos entrevistados mais pobres”.

O crescimento econômico dos últimos anos traduziu-se em forte expansão da demanda por bens e serviços. Esse perfil valoriza a feição “cultural” de certas atividades de lazer, como televisão por assinatura, eventos artísticos e viagens internacionais.

Telefones (celulares ou fixos), computadores e acesso rápido à internet configuram o padrão de investimentos em produtividade típico da classe média, o qual é emulado pelas famílias de classe média baixa.

Já os investimentos em capital humano — plano de saúde, filhos em escolas privadas, poupança ou investimentos financeiros e previdência privada — ainda são em boa medida restritos à classe média.

Mas as oscilações da renda familiar geradas por empregos pouco estáveis ou atividades por conta própria “sinalizam dificuldades para as faixas de renda mais baixas manterem o perfil de consumo ambicionado”.

Segundo Amaury de Souza e Bolivar Lamounier, endividando-se além do que lhes permitem os recursos de que dispõem, essas famílias se defrontam com um risco de inadimplência que passa ao largo das famílias da classe média estabelecida. (Continua amanhã)

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