domingo, 30 de janeiro de 2011

Impressões iniciais::Sergio Fausto

A esta altura não é possível ter mais do que impressões a respeito do governo Dilma Rousseff. E elas não são ruins. Em especial por uma ausência notável: Lula. Sinto-me como quem se recupera de uma intoxicação alimentar depois de se ver forçado a engolir quantidades excessivas de uma comida de qualidade duvidosa. O silêncio inicial de Dilma é a bem-vinda dieta de chá com maçã raspada.

O ex-presidente merece reconhecimento. Em seu primeiro mandato deu respaldo político firme à política econômica não petista da dupla Palocci e Meirelles, protegendo-a do intenso "fogo amigo" disparado pelo PT, de fora e de dentro do governo.

Tivesse sido diferente, o panorama econômico seria outro, e pior. Também importante foi a substituição do Fome Zero, bandeira da campanha eleitoral, pelo Bolsa-Família. O primeiro trazia a marca da esquerda cristã, remanescente das origens do PT, e padecia de problemas conceituais e operacionais graves. Já o segundo faz parte da família de programas de transferência de renda que se espalharam na América Latina a partir dos anos 1990, sob os auspícios do Banco Mundial e do BID.

Não são uma panaceia, mas se mostraram razoavelmente bem-sucedidos na mitigação da pobreza. Mais uma prova de que o presidente não se deixou prender por dogmas ideológicos de seu partido.

No segundo mandato, porém, inebriado pelo sucesso, Lula desandou a dizer disparates (muitos e em quantidades cada vez maiores) e a cometer equívocos. Na política externa, o maior de todos foi a aproximação política com o Irã e o desastrado acordo que supostamente daria solução alternativa à imposição de sanções àquele país pelo Conselho de Segurança da ONU. Lula ergueu o braço de Ahmadinejad em Teerã, para no dia seguinte assistir aos Estados Unidos rechaçarem o acordo, com o apoio da China e da Rússia, que o ex-presidente ingenuamente imaginou atrair para a posição brasileira. Tratou-se de uma aventura em que Lula se deixou levar pelos maus conselhos de seu chanceler e pela imensidão de seu ego.

Lula fechou o segundo mandato com chave de ouro. Disse ser "gostoso" ver Europa e Estados Unidos em crise, enquanto o Brasil acelera o crescimento. E sentenciou que com ele "acabou esse negócio de governar só para um terço do País", em encontro com representantes do movimento sindical e movimentos sociais vinculados ao governo. Provocação tola no primeiro caso. Pura lorota - mais uma - no segundo.

Há explicação, embora não haja justificativa, para o comentário sobre a Europa e os Estados Unidos. Lula sentiu-se traído por Barack Obama no episódio que culminou no malfadado acordo em Teerã. Com o ego ferido pelo fracasso em cena pública, reagiu de maneira descabida.

Já a segunda afirmação, sobre o modo Lula de governar, revela a tendência do ex-presidente a mistificar a si próprio e distorcer a História do País em seu benefício. Para repor a verdade dos fatos não custa perguntar: terá o Plano Real beneficiado apenas o terço mais rico da população? E a privatização das telecomunicações, que universalizou o acesso aos celulares e hoje permite almejar a universalização da banda larga? E a aprovação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério (Fundef), que tornou viável o acesso de quase 100% das crianças entre 7 e 14 anos à escola? E a Lei de Responsabilidade Fiscal, que protege o País da propensão nacional ao descontrole das contas públicas? Nenhuma dessas medidas foi tomada no governo Lula. Todas elas sofreram a oposição do PT e do ex-presidente.

Por contraste, é bom ver Dilma em exercício, mais ocupada em bem administrar o País do que em animar permanentemente o distinto público de um imaginário auditório. Uma presidente que cumpre a sua agenda de trabalho, com disciplina e empenho, e parece de fato preocupada em assegurar o maior número possível de nomeações pautadas pela competência, e não apenas por indicação política. Não é fácil, sob a avalanche de pressões partidárias por cargos na máquina estatal.

Até quando veremos essa cena que degrada a atividade política e compromete a qualidade dos serviços prestados pelo Estado à população? Até quando barões e anões do atraso terão tanto peso na política brasileira, a ponto de obterem Ministérios e controlarem estatais importantes?

Fosse o problema apenas residual - o lento declínio de oligarquias regionais -, haveria menos razão para exasperação. Mas o descenso das oligarquias regionais em nada garante a melhoria da representação política. Temos assistido cada vez mais à emergência de novos personagens a operar a política como negócio. Dessa perspectiva, o PMDB apresenta um fascinante campo de observação, pela mistura de "velhos oligarcas" e "novos operadores", cada qual ou cada grupo jogando seu jogo. Já no PT a lógica é partidária, mesmo quando o veículo são os sindicatos.

Quando vejo no Ministério de Dilma quadros políticos como José Eduardo Cardozo, Fernando Pimentel e Antônio Palocci não consigo evitar a sensação de que em algum momento da história da redemocratização brasileira se deu um "desvio" que desafortunadamente empurrou o que de melhor há no PSDB e no PT para campos opostos, piorando a qualidade de cada um e colocando ambos os partidos na contingência de pagar um tributo excessivo para governar o País. Que haja dois partidos de maior conteúdo programático, distintos e competitivos entre si, é ótimo para o Brasil. Que essa polarização impeça o diálogo substantivo em torno de políticas e reformas que atendam ao interesse público é uma lástima de graves consequências para o País.

Tomara que esse estado de coisas se altere, juntamente com o afastamento de Lula do centro da arena política. Ninguém jogou mais contra o diálogo e a favor da estigmatização do que ele e José Dirceu.

Será ingenuidade acreditar nessa possibilidade?

Diretor Executivo do IFHC, é membro do GACINT-USP.

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

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