A "perseguição da mídia" e o "ódio das forças mais reacionárias" derrubaram Carlos Lupi, segundo o próprio Lupi. O homem impoluto desafia a verdade até mesmo na carta de despedida: de fato, ele foi demitido por Dilma Rousseff, depois de uma recomendação da Comissão de Ética Pública. É o sexto ministro abatido por indícios gritantes de corrupção, o que dá uma taxa de queda de um para 57 dias, desde a posse do governo, ou de um para 30 dias, desde o adeus de Antonio Palocci, recordes absolutos na história política mundial.
O Brasil era, há um ano, um país que se comprazia por ter elevado uma mulher - uma "mulher forte" - à Presidência da República. Hoje, é um país que imagina essa mulher como a faxineira da República. Há algo de curioso, a ser investigado pelos antropólogos, nessa sutil recuperação de um simbolismo patriarcal. Contudo, para além disso, a nova narrativa, veículo de uma esperança ingênua, nasce no riacho do equívoco. Faxineiras eliminam a sujeira contingente - ou seja, as impurezas que se acumulam sobre um meio íntegro. A corrupção pública no Brasil é, porém, outra coisa: a seiva que confere vitalidade e equilíbrio a um sistema político degenerado.
Na hora do acordo geral que propiciou a emenda da reeleição, FHC perdeu irremediavelmente a oportunidade para deflagrar tanto uma reforma do Estado como uma reforma política. Lula nunca viu a necessidade de tais reformas e, após o quase colapso provocado pelo mensalão, se tornou um mestre na arte de manusear as disfunções de nosso sistema político como uma ferramenta de poder. A grande coalizão que articulou em torno da candidatura continuísta de Dilma está amparada, essencialmente, no princípio operativo da partilha de um butim.
Lula não inventou o patrimonialismo, mas o alargou até limites extremos. Sob o ex-presidente, a máquina administrativa dos ministérios foi reconfigurada para atender aos interesses particulares das incontáveis facções que formam o heterogêneo bloco de poder. Segundo a lógica do lulismo, ministérios não existem para desempenhar funções de administração pública, mas exclusivamente para acomodar as forças da coalizão, e ministros não são escolhidos a partir de critérios de competência, mas apenas em função de cálculos de intercâmbio político.
O ex-presidente sempre exerceu a prudência quando se trata da estabilidade da ordem política maior: do butim ministerial, ele excluiu as pastas ligadas ao Tesouro, às Armas e à Diplomacia. Fora desse núcleo do poder de Estado, toda a Esplanada foi cedida aos leilões de privatização da máquina pública. Os "partidos da base" foram contemplados segundo proporcionalidades maleáveis, mas reservaram-se cotas pessoais, como o latifúndio ministerial de José Sarney. Na divisão dos despojos, tratou-se o PT como uma confederação de correntes de peso desigual e o PMDB como uma coleção de máfias regionais. Ofertaram-se escalpos secundários da administração aos "movimentos sociais" palacianos e à miríade de ONGs articuladas em torno das bandeiras do ambientalismo e do multiculturalismo. O fruto da partilha de quase quatro dezenas de ministérios e mais de vinte mil de cargos de livre nomeação é um polvo monstruoso, imerso em guerras intestinas mas unido por uma visceral hostilidade aos direitos e interesses dos cidadãos.
O bloco de poder lulista se organizou à volta de um personagem carismático, de inclinações caudilhescas. Nas circunstâncias constitucionais de proibição de sucessivas reeleições, Lula criou o cenário paradoxal em que a fiel depositária de seu poder é uma figura destituída de brilho político autônomo e de qualquer traço de carisma. Além disso, a presidente é o seu oposto num aspecto decisivo, pois enxerga a administração pública com os olhos de um gerente. Lula e Dilma lêem o mesmo livro todos os dias, mas onde um lê negro, o outro lê branco. A gerente não aceita - na verdade, nem sequer entende - a lógica depravada sob a qual o líder caudilhesco montou o governo cujo comando lhe transferiu.
No seu primeiro dia no gabinete presidencial, de acordo com uma fábula verossímil, Dilma solicitou um calendário de 2012 e escreveu a palavra "liberdade" no espaço do mês de janeiro. Ela experimentaria um ano de submissão compulsória antes de formar um governo que pudesse chamar de seu. A queda em série das peças mais podres do dominó ministerial animou o seu projeto de remoldagem da máquina administrativa por um torno mecânico guiado pelo princípio gerencial. Metodicamente, vaza-se do Planalto a notícia de que a presidente pretende reduzir o número de ministérios e conferir ao conjunto um nível básico de eficiência operacional. Dilma quer mudar para uma casa nova, pois a que ocupa não pode ser saneada. Ela sonha com a mãe de todas as faxinas.
O sonho presidencial, contudo, está sustentado sobre a ilusão de ótica que é a marca inconfundível do pensamento gerencial. Numa organização corporativa, uma deliberação de diretoria é condição suficiente para a reconfiguração de todo o organograma. Um sistema político nacional funciona de modo mais complexo, principalmente quando assentado sobre o princípio da legitimidade democrática. A reforma ministerial almejada por Dilma não se coaduna com a teia de compromissos que formam a armadura do bloco de poder construído por Lula. A mãe de todas as faxinas solicitaria a reforma do Estado e, no fim das contas, uma reforma política de substância - ou seja, a ruptura com uma herança que serviu de lastro para o lulismo. A presidente não tentará dar esse salto, que está além de seu poder.
Ao que tudo indica, para Dilma, janeiro será um tempo de confronto com o espectro da impossibilidade e de reconhecimento de sua insanável subordinação à figura do antecessor. No mais cruel dos meses, ela riscará a palavra "liberdade" do calendário que mantém numa gaveta secreta.
Demetrio Magnoli é sociólogo e doutor em geografia humana pela USP.
FONTE: O GLOBO
Nenhum comentário:
Postar um comentário