Mito e mania, abstração e equívoco, lugar-comum e bordão eleitoral, a expressão “classe média” tornou-se o novo objeto de desejo dos políticos, marqueteiros, empresários, acadêmicos e mediadores.
Numa arrancada tipicamente brasileira, classe média tornou-se uma designação que não designa coisa alguma, identidade não definida, bolha vocabular. O que não impede que seja cortejada, venerada e idolatrada pelas quase três dezenas de partidos políticos e milhares de empresários ansiosos para conquistar mercados aqui e agora. A qualquer preço.
Classe média seria o estrato sócio-econômico intermediário, meio-termo entre trabalhadores e empresários ou, como queriam os marxistas clássicos, entre proletários e capitalistas. Nesta condição foi convertida em sinônimo de burguesia, logo conotada pejorativamente e arquivada.
Como o meio é um conceito subjetivo, vago, foi segmentado em frações – classe média-baixa, média-média e média-alta. A necessidade de precisão impeliu o marketing americano a adotar a hierarquização do abecedário e assim a middle class da revolução industrial ficou alojada entre as classes B e D. O ranking serve para classificar renda, nada esclarece em matéria sócio-cultural. Muito menos no tocante a pertencimentos sócio-políticos, já que um pequeno negociante – em termos de poder aquisitivo e necessidades culturais – pode estar muito abaixo de um trabalhador qualificado.
O endeusamento da classe média, ou classe C (segundo os cânones televisivos), não passa de uma tentativa de aposentar a imagem “revolucionária” da luta de classes. Ao distribuir à cidadania as vantagens materiais relativas a saúde, instrução, moradia, transporte e segurança, os Estados democráticos convertem a isonomia em algo real, concreto, mas em matéria cultural a homogeneização é deletéria. Mais do que isso: perigosa.
O nivelamento social constitui uma das bases do Estado de bem-estar, mas a busca da igualdade não pode converter-se num embargo à diversidade espiritual ou existencial. A sociedade humana é necessariamente diversificada. Mantê-la aprisionada a paradigmas religiosos, morais e a cânones intelectuais degradantes liquida a liberdade de escolha e neutraliza todos os avanços.
Ao converter em ideal a despolarização da sociedade é preciso não perder de vista o que aconteceu na antiga Iugoslávia dirigida com mão de ferro pelo déspota Josip Broz, Tito. Em meados dos anos 50, ao mesmo tempo em que a Hungria tentava romper a Cortina de Ferro imposta pelo Kremlin, um intelectual e político iugoslavo altamente colocado na hierarquia comunista, Milovan Djilas (ou Dilas), escreveu um livro-bomba, A Nova Classe, sucesso internacional instantâneo.
O alvo eram os burocratas bolcheviques que se apossaram do aparelho de um Estado teoricamente “socialista” para servir à manutenção dos seus privilégios. Enquanto a Europa não comunista organizava-se livremente para chegar ao mercado comum e acabar com as guerras, Tito tentava o não alinhamento enquanto seu companheiro Djilas foi ainda mais longe e investia contra a nomenklatura comunista – a nova classe – que pregava a supressão das liberdades para garantir as pretensas conquistas sociais.
A ditadura dos índices de audiência televisiva hoje firmemente instalada na sociedade brasileira contraria os fundamentos pluralistas da democracia. Oferecer casas para quem mora em áreas de risco é uma obrigação humanizadora do Estado de direito, mas a contrapartida não pode ser a desumana universalização da idiotice.
Milovan Djilas investiu há quase sessenta anos contra o Big Brother, Grande Irmão, o Estado policial bolchevique caricaturizado um pouco antes por George Orwell em 1984 (mas escrito em 1948). Não podemos esquecer esta associação entre os dois intelectuais libertários europeus no momento em que outro Big Brother, ainda mais difundido e poderoso, torna-se a moeda de troca para sufocar intelectualmente um segmento perto de alcançar seu lugar ao sol.
Alberto Dines é jornalista
FONTE: JORNAL DO COMMERCIO (PE)
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