Graciliano Ramos (1892-1953) é o mais importante romancista da geração de 1930, que marca o apogeu do regionalismo brasileiro. Vidas Secas, de 1938, é o ponto alto de sua obra. A grandeza de Graciliano, contudo, ultrapassa os domínios clássicos do regionalismo e da estética realista e social, embora neles conserve seus fundamentos. Seu apego feroz ao real o transporta, em uma reviravolta traiçoeira, para uma densa reflexão a respeito da linguagem e da própria literatura. A ficção de Graciliano nos obriga a aceitar o fato de que, sem a língua, não há realidade. Sem as palavras, o mundo não existe.
Entre os horrores da fome e da miséria absoluta, um segundo horror permeia, de ponta a ponta, Vidas Secas: a fome insaciável de palavras. Comunicar-se, expressar-se, dizer é, para Fabiano e sua mulher, Sinhá Vitória, como também para os dois filhos e até para a cadela Baleia, uma questão de vida ou morte. Tão essencial quanto a necessidade de alimentos. Provavelmente, até, anterior a ela.
O “buraco no peito” de que Fabiano nos fala não é só o vazio de comida, mas também a ausência de palavras que confiram um sentido ao mundo. Considera-se um homem de imaginação fraca, derrotado pela incapacidade de narrar a própria existência. Evita as recordações – que não tem como expressar, preferindo ater-se à brutalidade dos fatos. Passa a crer, então, que os pensamentos são perigosos: “uma ideia boa arrasta consigo outra ideia má”. Enquanto Vitória se agarra à ideia fixa de uma cama de couro, Fabiano protege-se com o manto espinhoso do silêncio.
Só Baleia, a cadela, apesar de desprovida da fala, conserva uma tênue fé (fantasia) na existência de ossos para mastigar, embora não os veja nunca. Baleia luta, com seus parcos recursos de cadela, para entender o incompreensível. Também as crianças se debatem. Para o filho mais velho, as palavras e as coisas divergem, e por isso os nomes se tornam traiçoeiros. Os pais conversam aos pedaços e por imagens, perdidos entre o mal-entendido e a repetição. Há na família a consciência vaga de que só chegarão aos alimentos quando puderem, enfim, expressar a ideia da fome.
Em momentos de descontrole – como em sua briga com o soldado amarelo – Fabiano, sem outros recursos, e imitando Baleia, “rosna” de raiva. Tenta dar alguma explicação aos filhos a respeito de seus sofrimentos, mas as crianças se aborrecem com as contradições da fala paterna. Tudo é turvo – a fome é turva. A família sobrevive no desentendimento. Fabiano se culpa por sua “linguagem seca”. Livres dos nomes, que as crianças desconhecem, as coisas também lhes parecem misteriosas. Palavras são luzes: são como o sol que resseca a terra. Como suportá-las?
Em uma visita à cidade, as crianças se perguntam, perplexas, como podem os homens guardarem na memória tantas palavras. Faltam-lhes as palavras essenciais – como as que buscam para expressar a morte de Baleia que, mesmo na despedida, “cumpre suas obrigações de cadela”. A natureza se sobrepõe à linguagem, que se esfarela como as últimas plantas do sertão. Fabiano sente, sempre, “um peso por dentro”, que o empurra para a terra e o aproxima dos cactos.
É um homem que não consegue reter lembranças – e, sem elas, ninguém constrói um destino. Mesmo quando fala, fala para esquecer, e não para recordar. Pergunta-se: seria seu desejo de tornar-se gente um despropósito? Enquanto se pergunta se as crianças pensam, ou são como os animais que se limitam a rosnar, ele se alimenta das precárias palavras que consegue trocar com a mulher. Palavras frouxas, pontuadas de assombros, que tornam o mundo pastoso e duvidoso.
A ausência da linguagem leva Fabiano a duvidar da própria existência. Ele existe mesmo – ou será só um traço vago e inútil que se desenrola no horizonte nordestino? Aos poucos percebe que, apesar das suspeitas que alimenta a respeito da fala da mulher, é ela, ainda assim, quem prolonga sua vida e – como uma Sherazade que, em vez de salvar a si mesma, salva o outro – adia a sua morte. É a fala débil e incongruente de Vitória que, enfim, esboça a vitória do homem sobre o mundo. Rascunha um futuro e delineia uma existência.
Vidas Secas não é só um relato sobre a miséria extrema e o horror da seca. Prisioneiros da fome e do deserto, Fabiano, Vitória e seus filhos lutam, todo o tempo, em busca de um instrumento que os alce acima das coisas. A natureza – seca, inóspita, aterrorizante – não pode ser um destino. Alguma coisa a mais – o humano, que só nasce revestido em palavras - deve surgir para que seja possível domá-la. A vida é seca não só porque é miserável, mas também porque é silenciosa. Sem a possibilidade de falar, sem o poder de dar nomes às coisas, não há para Fabiano e sua família sofrimento que termine.
Fonte: Prosa / O Globo
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