Uma assembleia de poucos integrantes, num prazo curto e pré-fixado, passaria a limpo o sistema político. Seus integrantes se candidatariam sabendo que não poderiam concorrer nas duas eleições seguintes. Os candidatos poderiam ser partidários ou avulsos
Na manhã de sexta-feira, depois do terror da véspera, a presidente Dilma Rousseff recebeu pesquisas informando que a maioria silenciosa era contra a violência e o vandalismo dos protestos. Na reunião com o ministro José Eduardo Cardozo, da Justiça, e o diretor-geral da Polícia Federal, Leandro Daiello, exigiu providências para garantir a ordem. Na fala, acertou no tom, no teor e no amarelo da roupa. Perdeu no tempo. Já na terça-feira, quando afagou os protestos como "próprios da democracia", poderia ter falado grosso contra as arruaças. Mas fiquemos nos acenos que fez ao movimento em relação às bandeiras mais nítidas: um plano nacional de mobilidade urbana, a ser pactuado com prefeitos e governadores; 100% dos royalties do petróleo para a educação, o que não trará resultados imediatos; médicos estrangeiros para reforçar o SUS; e empenho por uma reforma política que responda à bronca dos manifestantes com o sistema e com os políticos.
Como fará isso, se os congressistas se recusam a sair do conforto das regras atuais, que lhes garantem a eleição e o resto? "Quero contribuir para a construção de uma ampla e profunda reforma política, que amplie a participação popular", disse Dilma, usando o verbo certo. Ela só pode contribuir, pois a tarefa é do Congresso. "É um equívoco achar que qualquer país possa prescindir de partidos e, sobretudo, do voto popular, base de qualquer processo democrático", disse em resposta ao refrão "o povo unido não precisa de partido". E encerrou essa parte defendendo, para o cidadão, "mecanismos de controle mais abrangentes sobre os seus representantes". Esse é o ponto. Os manifestantes disseram, com palavras e cartazes, e até para alguns congressistas, que não se sentem representados por ninguém.
O voto distrital, misto ou puro, e a revogabilidade dos mandatos, o "recall", são alguns dos mecanismos que podem reduzir o abismo entre eleitores e eleitos depois da apuração dos votos. O problema, porém, não é de fórmulas, é de processo. Se a contribuição de Dilma ficar no envio de uma proposta, já sabemos onde vai parar. A não ser que os congressistas e os partidos também estejam ouvindo a voz da rua, como ela disse estar.
Por isso, há quem esteja disposto a sugerir à presidente a convocação de uma Constituinte exclusiva com essa finalidade. Uma assembleia reduzida para, num prazo curto e pré-fixado, passar a limpo o sistema político-eleitoral. Haveria candidatos partidários e também avulsos. Eles já se candidatariam sabendo que, pelo menos nas duas eleições seguintes, não poderiam concorrer. Isso atrairia pessoas sem projeto eleitoral, dispostas apenas a contribuir. As campanhas seriam financiadas com recursos exclusivamente públicos, evitando a influência do poder econômico, que financia eleições para garantir submissões.
Essa é, basicamente, a proposta do deputado Miro Teixeira (PDT-RJ), que dormita na Câmara há mais de uma década, para a reforma dos sistemas político e tributário. Hoje, ele pensa que seria oportuno reescrever também o capítulo da organização dos Poderes, que tem permitido, com suas indefinições, conflitos recorrentes, especialmente entre Judiciário e Legislativo. Outros detalhes do processo, é claro, seriam negociados.
A Constituição atual é pedra sagrada, porque deriva do povo, do chamado poder originário, que elegeu a Constituinte de 1987/1988. Por isso, nova assembleia seria precedida de uma consulta popular sobre sua convocação ou não. No fragor dos protestos, os partidos e as instituições políticas foram injuriados e renegados. Mas, quando os rancores se abrandarem, hão de entender que não há solução fora da democracia representativa. A não ser no autoritarismo ou numa máquina do tempo que levasse à velha Atenas e sua Ágora.
Os músculos da direita
Foi um dos líderes (na falta de outra palavra, pois não gostam dessa) do Movimento Passe Livre (MPL), Rafael Siqueira, que declarou: "A suspensão de novos atos é por dois motivos simples. A gente vai ter que analisar e fazer uma reflexão profunda com as pessoas que são aliadas da gente na luta contra o aumento sobre que atitude tomar. A segunda coisa é que muita gente da direita, com pautas de que a gente discorda totalmente, estão se aproveitando dos atos".
Vândalos, ladrões, punks e bandoleiros do PCC também se infiltraram. Acontece com movimentos inorgâncos. Mas foram os neofascistas e os militantes da nova extrema-direita que levaram ao movimento a marca da intolerância política e o viés fascistizante. Reconhecer a infiltração não suprime a importância e a legitimidade dos que protestaram democraticamente. Se queremos saber o que se passa, isso precisa ser dito e melhor conhecido. Nos quartéis, ela já teria núcleos de simpatizantes na base, não nas cúpulas. PT, CUT e PCdoB talvez tenham errado em comparecer ao ato de quinta-feira, chamado pelo MPL para celebrar a vitória, o recuo do prefeito e do governador no aumento das passagens. A festa virou guerra entre os raivosos ativistas da direita e os da esquerda. O Portal Terra publicou foto de um direitista mordendo raivosamente a bandeira do PT. A descrição do jornalista Rodrigo Viana, que lá estava, em seu blog, sobre a corrente de ódio, é preciosa. Essas cenas não vimos na tevê.
Na democracia, há lugar para todas ideologias. O problema, no Brasil, é que não existe uma direita assumida e esclarecida, que aceite o jogo democrático. A que sobra, é um legado dos porões da ditadura. Prefere as máscaras e ação dissimulada de indignação.
Fonte: Correio Braziliense
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