Sejamos francos! As revoltas de junho não trouxeram nada de essencialmente novo à agenda de problemas postos para o Estado brasileiro. Demandas por cidades mais habitáveis, melhor saúde e educação bem como combate à corrupção estão aí há muito tempo. Saúde e educação estão no centro da agenda governamental desde a redemocratização e já foram objeto de diversas políticas. Já havia um programa federal destinando R$ 50 bilhões para programas de mobilidade urbana nas grandes cidades. A questão do transporte coletivo esteve no centro de campanhas eleitorais para as prefeituras municipais.
Dizer que as políticas adotadas até aqui foram totalmente ineficientes requer desafiar os fatos. Entre 1980 e 2010, a taxa de mortalidade infantil no Brasil caiu de 69 para 16 por 1.000 nascidos vivos e a esperança de vida passou de 62 para 73 anos. A população de mais de 18 anos que chegou ao ensino médio pulou de 6,2 para 39,7 milhões; a que chegou ao ensino superior passou de 3,4 para 21,5 milhões. Ambas aumentaram em mais de 6 vezes no período.
Entretanto, ainda que rios de tinta estejam sendo gastos para interpretar o que afinal revelaram as revoltas de junho, há razoável consenso de que reina grande insatisfação com a qualidade dos serviços públicos e da representação política. A disposição para manifestar esta insatisfação é, por sua vez, parcialmente explicada pelos avanços no sistema educacional. Sólida tradição de estudos revela as estreitas relações entre participação política, renda e escolaridade. Indivíduos mais escolarizados são mais exigentes e contam com mais recursos para fazer política.
Perigosa confusão, contudo, deriva do fato que representação política e qualidade dos serviços públicos estejam no centro das insatisfações. Ainda que sua presença nas manifestações seja simultânea, é um equívoco estabelecer que a primeira é causa da segunda. Deste equívoco decorre a ilusão de que uma reforma política seria condição necessária e suficiente para melhorar a eficiência do Estado brasileiro. Melhores serviços públicos emergiriam de uma nova categoria de representantes políticos. A operação de purificação seria operada por novas leis eleitorais, cuja superioridade seria revelada pela vontade popular a ser manifesta através de um plebiscito. Na verdade, este é um caminho repleto de incertezas. A relação de causa e efeito entre novas leis eleitorais e um país diferente só parece aceitável porque o argumento tornou-se familiar, de resto repetido inúmeras vezes a propósito de outros eventos de comoção nacional anteriores. Seu apelo é razão direta da simplificação, de jogar para baixo do tapete os reais desafios a serem enfrentados.
Concentradas nas cidades e estados mais ricos do país, as revoltas de junho revelaram que tornar nossas cidades mais habitáveis e seguras deve ir para o topo da agenda dos governos, obtendo centralidade comparável a das políticas de saúde e educação. Revelaram ainda - mais uma vez - que todos os caminhos levam a Brasília. Ainda que, na origem, prefeitos e governadores fossem o alvo dos protestos, estes rapidamente foram convertidos em problema cuja solução deveria vir da União. O pacto ao qual a presidenta chamou prefeitos e governadores faz sentido. Ainda que as políticas de transporte, educação e saúde sejam executadas pelos governos estaduais e municipais, seu financiamento e regras de operação dependem em grande medida da União. Nestas políticas, a avaliação dos presidentes depende do desempenho dos governos subnacionais assim como este último depende de políticas lideradas pela União.
Por esta razão, é curioso que o programa de mobilidade urbana proposto pela presidenta tenha recebido tão escassa atenção da opinião publicada. Seria de esperar que, para além dos valores, o tipo de políticas a ser adotadas fosse discutido à minúcia, com rigor semelhante ao dispensado às perguntas a ser feitas no (sabiamente adiado) plebiscito da (arriscada) reforma eleitoral.
O fato inescapável é que atender as demandas de um eleitorado mais exigente e disposto à mobilização implica inserir novos itens de gasto nos orçamentos públicos. Entretanto, o recurso à inflação ou ao endividamento fácil não está mais disponível como estratégia de financiamento público. Eventos anteriores revelaram que os governos no Brasil se deparam com um limite, que é essencialmente político, para aumentar a carga tributária. As revoltas de junho revelaram que este limite também está sendo atingindo com relação aos preços dos serviços públicos. Ainda que os royalties do petróleo sejam a única importante fonte de receita a ser obtida no futuro próximo sem elevados custos políticos, estão em franco processo de tornar-se recurso cativo da educação e saúde, sob o impacto das manifestações. Logo, para inserir novos itens de gasto será necessário remover placas tectônicas dos orçamentos atuais, o que manterá elevada a temperatura da disputa por recursos públicos, como já vimos assistindo há algum tempo.
Não menos relevantes politicamente são as pressões pela redução do gasto público, identificado como gerador de pressões inflacionárias, bem como de ampliação do investimento público, decisões estas das quais dependeria o crescimento econômico de longo prazo. As avaliações acerca das taxas de investimento na economia têm efeito semelhante às pesquisas de opinião na avaliação do desempenho dos governos.
A política, escreveu Harold Lasswell, em livro clássico publicado em 1936, é essencialmente uma disputa em torno de "quem obtém o quê, como e quando". Nas revoltas de junho, os manifestantes usaram as armas que têm para obter ou aumentar sua parte na distribuição da riqueza nacional que é operada por meio de políticas públicas.
Marta Arretche, professora de ciência política da USP
Fonte: Valor Econômico
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