É reducionismo tentar ver no poderoso A Bela Que Dorme só uma metáfora da Itália sob o jugo de Berlusconi
Luiz Carlos Merten
Há o que não deixa de ser uma ironia no título do filme de Marco Bellocchio. No original, chama-se La Bella Addormentata, A Bela Adormecida. No Brasil, ficou A Bela Que Dorme. No conto de fadas, a princesa vítima de maldição é despertada do seu sono pelo beijo do príncipe. No filme, a bela que está em coma morre quando os aparelhos que a mantêm viva são desligados. Mas existem outras histórias e, numa delas, a que encerra o sentido do que Bellocchio quer dizer, a jovem drogada relaciona-se com o médico que tenta impedi-la de se suicidar. O médico não deixa de ser seu príncipe. E é interpretado, ó curiosidade, pelo filho do diretor, Gian Giorgio.
Como em Nel Nome del Padre, de 1970, Bellocchio toma a religião como alvo no novo filme. Em 2009, a Itália foi dividida em duas por uma verdadeira guerra travada entre católicos e laicos. O país rachou, e tudo por causa de Eluana Englaro. Durante 17 anos, a garota que havia sofrido um acidente estava em coma. Seu pai brigou na Justiça pelo direito de desligar os aparelhos que a mantinham em vida vegetativa. A Igreja e o partido de Sílvio Berlusconi, em nome de uma hipotética defesa da vida, se insurgiram contra a Justiça e levaram o caso ao Parlamento.
Bellocchio resume 17 anos aos seis dias em que Eluana é internada na clínica para que seja feita a eutanásia - o desligamento dos aparelhos. Em frente à clínica, em Udine, ocorrem manifestações. E um debate ocorre no Parlamento, onde um ex-socialista, convertido em berlusconista, vota, por consciência, contra o partido. É fácil ver no filme - e na bela que dorme - uma metáfora da Itália sob Berlusconi. Demasiado fácil, até reducionista. Porque o quadro traçado pelo diretor é mais amplo.
Segundo suas palavras, Bellocchio criou aqui um puzzle. Existe o caso de Eluana, mas também o da atriz (católica) que reza noite e dia e insiste em manter a filha no coma. E há a drogada suicida. Os aparelhos de Eluana serão desligados? A filha da atriz sairá do coma? O médico impedirá o salto da suicida no vazio? Além da referência a O Nome do Pai, Bellocchio cita Il Salto nel Vuoto, que fez em 1980.
Ao repórter, Isabelle Huppert, que faz a atriz, contou que o diretor a escolheu para o papel um pouco porque ela falava italiano, mas também pela imagem de um filme antigo de Mauro Bolognini - A Dama das Camélias, de 1980, em que Marguerite Guatier tomava o sangue quente do veado no afã de vencer a tuberculose, sob o olhar horrorizado do garoto. Na Itália não adormecida, mas em crise econômica e política, Bellocchio vê nos dramas existenciais a melhor forma de expressar o país. São várias histórias, todas articuladas em torno ao medo. Medo perante as instituições, a morte (e a vida). É um grande filme e, interessante, para falar de pais e filhos - de ressurreição? -, Bellocchio vale-se (mas ele diz que é mera coincidência) de filhos de famosos. O filho dele e também dos atores Ugo Tognazzi e Michele Placido, que fazem outros papéis importantes.
Fonte: Caderno 2 / O Estado de S. Paulo
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