Uma campanha política abriga complexa cadeia de vetores, entre os quais, pesquisas, discurso, comunicação, articulação, mobilização das massas, recursos, agenda e logística. Cada ciclo tem sua natureza, seu clima e suas circunstâncias, as quais, por sua vez, determinam maior ou menor ênfase em um ou outro componente de agregado eleitoral. Um ponto em comum, porém, tem balizado as campanhas eleitorais ao longo dos últimos 60 anos, ou, mais precisamente, desde a vitoriosa campanha de Getúlio Vargas, em 1950, quando percorreu todos os 20 Estados da época, lendo em palanques escorreitas peças que tratavam dos problemas e demandas de cada comunidade. Desde aqueles tempos de grande carência logística para chegar às regiões até os dias atuais, os discursos elegem como alavanca o culto ao "eu". A prevalência dos perfis pessoais sobre a representação coletiva, expressa por "nós", decorre do caráter individualista que é marca da política nacional, mesmo nos tempos em que os entes partidários acentuavam suas distinções, como foi o caso do velho PSD (representando a aristocracia rural) e da UDN (representando as elites urbanas).
Os principais atores individuais da cena política distinguiam-se por traços inconfundíveis, a denotar a admiração popular por figuras como o herói, o guerreiro, o pai dos pobres, o amigo do povo, o homem de palavra. Vargas vestia o manto de pai dos pobres; Juscelino Kubitschek era charmoso, sorridente e pé de valsa; Jânio Quadros, com seu jeito histriônico, simbolizava a autoridade, portando a vassoura da limpeza contra a corrupção; João Goulart assumia a imagem de herdeiro de Getúlio, desfraldando a bandeirado trabalhismo; os presidentes da ditadura militar, sob a espada do "combate ao comunismo e aos movimentos subversivos", tinham cada qual o seu estilo, com realce para o duro general Garrastazu Médici, que fez fama como torcedor do Grêmio (RS) e do Flamengo (RJ); o acelerado general João Figueiredo, com seu hobby de criar cavalos de raça; e o desenvolvimentista Ernesto Geisel, que não escondia a fé luterana.
No ciclo da redemocratização, José Sarney, com a imagem de cacique político; Fernando Collor, que fez a abertura econômica e saiu por impeachment do Congresso; o imprevisível Itamar Franco, fiador do Plano Real; Fernando Henrique Cardoso, elevado ao patamar de responsável pela estabilidade da moeda; Luiz Inácio Lula da Silva, o novo "pai dos pobres"; e Dilma Rousseff, sobre a qual se procura desenhar a imagem de faxineira da gestão pública.
Até houve tentativa de instalar por aqui a era do culto ao "nós", dentro da qual se descortinaria um horizonte pontilhado de formas inovadoras de fazer política. Nele, um ambiente asséptico impregnaria a administração pública, irradiando pelas instâncias federativas valores éticos e critérios de promoção do mérito e eliminando as correntes contaminadas por indicações politiqueiras para cargos e funções.
A modernidade foi uma promessa da era Collor. Feneceu por causados piores males da República. Os tempos tucanos de FHC também foram promissores na perspectiva da modernização institucional. Afinal, tinha-se no comando da Nação um renomado scholar. Os ares encheram-se de expectativas. Vislumbrava-se uma gestão racional e com foco em resultados. Mas, ao fim de oito anos, a velha política fincou pé. Lula chegou, em 2003, com o verbo mudar abrindo uma peroração cheia de esperanças. A ascensão do PT ao centro do poder assim era traduzida: "Os velhos costumes estão com os dias contados, o País abriu uma agenda ética". O sentimento era de que o Brasil, finalmente, encontrava o caminho da redenção moralizadora.
Um massacre de marketing fez a demarcação das fronteiras entre os puros e os impuros, os éticos e os imorais. Outros conceitos foram intensamente massificados: bons e maus, pobres e ricos. Em determinados momentos parecia que os discursos de Lula e colegas tinham como foco o resgate da velha luta de classes. De maneira escancarada, o discurso insistia em propagar a existência de um edifício com duas torres: uma habitada pelos pobres, a outra, de propriedade das elites. Por deliberada estratégia de criar um projeto de poder de longo prazo, sob a égide da bandeira socialista, o PT desprezou (e ainda despreza) o fato de que o convívio com as velhas práticas o tornou passível do fenômeno da mimese. Igualou-se a outros entes do espectro partidário, indo mais longe: foi apanhado com a mão na cumbuca. A Ação Penal 470 (também chamada de mensalão) jogou o partido no pântano da política.
Portanto, o culto ao "nós", que nos dois mandatos de Lula foi entronizado nos palanques, não chega hoje com prestígio para convencer as massas. Neste ponto, convém lembrar que o marketing da louvação, em intenso desenvolvimento no País, desde os tempos galopantes de Collor (que fazia uma corrida diária de cooper acompanhado de jornalistas), subiu ao pódio do descrédito. Essa é uma das boas-novas que se podem anunciar na arena eleitoral do próximo ano. Os últimos governos rebocaram com tanta argamassa as paredes da gestão que elas ameaçam abaular e desmoronar. Tanto o governo federal - com sua planilha de grandes obras - quanto os governos estaduais deverão passar pelo teste do nosso carbono social. Ou será que não se percebeu a existência de novo processo para medir o tempo (cronogramas) e conferir promessas? (Lembrando: os testes de datação de objetos da mais remota Antiguidade - para descobrir, por exemplo, a verdade sobre o Santo Sudário de Turim - são feitos com o carbono 14, um isótopo radioativo e instável que declina em ritmo lento a partir da morte de um organismo vivo.)
O nosso carbono 14, ou melhor, para 2014, é a onda centrípeta, das margens para o centro, com suas percepções e decepções da política. Engodos até podem continuar a engabelar as massas. Há, porém, um culto ao "nós" menos sujeito a firulas demagógicas. É o olhar mais agudo da sociedade sobre as tramoias da política.
Fonte: O Estado de S. Paulo
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