- O Estado de S. Paulo
Meu amigo Everardo Maciel, em brilhante e recente discurso de posse, citou a bela frase de Raymond Aron a uma turma de alunos. "Decerto, este curso não se destina a ensinar o que vocês devem pensar; mas desejaria que ele lhes ensinasse duas virtudes intelectuais: a primeira, o respeito aos fatos; e a segunda, o respeito aos outros". Lembrei-me da observação de Norberto Bobbio sobre a maior lição de sua vida: "Aprendi a respeitar as ideias alheias, a deter-me diante do segredo de cada consciência, a compreender antes de discutir e a discutir antes de condenar. E a detestar fanáticos com todas as minhas forças".
As sábias lições de Aron e Bobbio talvez, quem sabe, pudessem ter maior presença no fundamental debate público brasileiro ao longo dos próximos quatro anos. Quanto mais não seja, porque, passadas as eleições, se espera que não seja possível ao "novo" governo continuar com seus marqueteiros e militância "chamada às armas", como nas semanas pré-eleição. Agora, trata-se de governar um país complexo, rico em sua diversidade e de enorme potencial. Mas com sérios desafios de curto, médio e longo prazos à frente, impossíveis de lidar com marquetagem/militância, insistente retórica contra um vago "eles" e plebiscitos sobre questões que não comportam simples respostas.
Na verdade, será com seus atos concretos, e não com discursos e gerúndios, que a presidente Dilma estará definindo agora, isto é, nos próximos dois a seis meses, todo o seu segundo mandato. E em circunstâncias que não lhe são muito favoráveis. Em boa medida, como notei em meu artigo anterior neste espaço, por dois tipos de pesada herança que deixa para si própria.
Primeiro, pelas consequências de suas decisões (ações e omissões) ao longo, pelo menos, dos últimos quatro anos; e de implicações de legados que criou para si (ou permitiu que seus marqueteiros criassem) pelo teor de seu discurso de campanha, a forma "estarrecedora" com a qual procurou desconstruir os seus dois principais adversários.
Na área econômica, pela taxativa recusa de reconhecer problemas sérios de crescimento, que vai ser negativo em termos per capita em 2014 e menos de 1% per capita na média nos quatro anos de seu primeiro mandato; de inflação, que vai pelo quarto ano consecutivo de novo roçar o teto da meta. Reconhecer o grave desequilíbrio causado no setor elétrico por sua Medida Provisória (MP) 579, de fins de 2012, bem como problemas com a Petrobrás e com o etanol.
As contas a pagar estão chegando, todas, e rápido: para o contribuinte, para o consumidor, para as empresas, para o investidor, para o Tesouro. E não há mais como culpar "heranças malditas", a situação internacional, a mídia, um cambiante "eles", e assim por diante. As heranças com as quais o governo iniciará seu democraticamente conquistado segundo mandato são de sua própria lavra.
Vale lembrar, a propósito, que cerca de um ano e meio atrás (24/6/2013) a presidente Dilma convocou reunião de governadores, prefeitos e lideranças partidárias, em Brasília, para ouvirem o que seriam as respostas do governo às manifestações de rua que haviam marcado aquele mês. Ali, a presidente propôs cinco pactos. E em entrevista à Folha (29/7/2013) a presidente anunciou um sexto pacto: Pela Verdade.
Mas o pacto que nos interessa aqui e agora (apresentado, se me lembro bem, em primeiro lugar dentre os cinco) era sobre "responsabilidade fiscal", definida como "controle de gastos para garantir a estabilidade da economia e conter a inflação". À época, junho de 2013, o governo vinha reafirmando seu compromisso com um esforço fiscal de 2,3 % do PIB. Como este ano agora até as eleições, procurou manter a ficção de que estaria empenhado em realizar um esforço fiscal perto de 1,9% - sem mágicas contábeis do tipo das que subtraíram credibilidade à política fiscal do governo.
Em sua longa entrevista aos principais jornais do Brasil e publicada na sexta-feira, a presidente voltou ao tema do pacto, que havia ficado completamente esquecido ao longo da campanha (que durou bem mais que um ano e meio). Na verdade, passaram-se nove longos anos desde que, ao final de 2005, a então chefe da Casa Civil da Presidência da República detonou o embrião de uma sugestão em andamento na área econômica do governo, tachando a proposta de "rudimentar" e asseverando que "gasto é vida".
Na entrevista de sexta agora, passados nove anos, a presidente reeleita afirma que "ao longo do governo, você descobre que várias coisas estão desajustadas. Várias contas que podem ser reduzidas... o que vamos tentar é um processo de ajuste em todas as contas do governo, vamos revisitar cada uma e olhar com lupa o que dá para reduzir, o que dá para tirar, o que dá para modificar e o que dá para mandar para o Congresso".
O reconhecimento, ainda que tardio, tentativo e um tanto tortuoso (o que vamos tentar fazer, o que quer que venha a ser, não é o que "eles" fariam), deve ser saudado porque representa não só uma imperiosa necessidade, como a busca de uma credibilidade e um rumo meio que perdidos na área fiscal. Que, como se sabe, envolve o nível, a composição e a eficiência tanto do gasto público quanto da carga tributária.
Todos os jornais registraram as palavras da presidente "vamos fazer o dever de casa", em termos de combate à inflação e de controle da velocidade de crescimento do gasto público. No agregado, muitíssimo acima do crescimento do PIB nos últimos anos.
Todos registraram também as palavras com que, caracteristicamente, mandou seu recado aos leitores: "Estou dizendo que vou manter o emprego e a renda. Ponham na cabeça isso".
A presidente sabe, quero crer, que será com ações efetivas, e não com palavras, que estará jogando, a partir de agora, o Brasil dos próximos quatro anos. Pessoalmente, desejo-lhe boa sorte. Mas sempre com as lições de Aron e Bobbio na cabeça.
*Pedro S. Malan é economista e foi ministro da Fazenda no governo Fernando Henrique Cardoso.
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