• Depois de conceder ao PT a graça de cumprir três mandatos presidenciais sem oposição digna do nome, o PSDB finalmente promete arregaçar as mangas contra o governo — bem, reúne todas as condições para fazê-lo
André Petry – Veja
Era quase ridículo escrever, mas o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso entendeu que era preciso fazê-lo mesmo assim. Então, em meados de 2011. ele assinou um artigo sobre o papel da oposição. A certa altura, FHC dizia: "Cabe às oposições, como é óbvio e quase ridículo escrever, se oporem ao governo". Ridículo, mas necessário. No ano anterior, a presidente Dilma Rousseff fora eleita e começava o terceiro mandato consecutivo do PT no Palácio do Planalto — e o partido nunca, nesse tempo todo, sofrerá uma oposição digna do nome. Nesse contexto, era até preciso esclarecer que oposições existem para se opor ao governo. Na semana passada, agora que o PT caminha para completar dezesseis anos no poder, parece que, enfim, o PSDB resolveu encarar a missão de fazer oposição.
Derrotado, mas carregando um vistoso balaio de 51 milhões de votos, o tucano Aécio Neves voltou para Brasília depois do descanso pós-eleitoral e recebeu — ao desembarcar do avião de - carreira, ao deixar o aeroporto, ao chegar ao Congresso, ao entrar no plenário — tratamento normalmente dado às celebridades, com centenas de admiradores gritando seu nome, fotogrando e selfizando. Eis aí a primeira condição para fazer uma oposição eficaz: ter um líder popular e com algum carisma.
No dia seguinte ao seu retomo, numa reunião com aliados, Aécio prometeu fazer "a mais vigorosa oposição a que este Brasil já assistiu". Mais tarde, da tribuna do Senado, fez seu primeiro discurso na condição de líder da oposição, com plenário cheio e galerias lotadas. Criticou com dureza a campanha do PT e definiu seu papel: "Ainda que por uma pequena margem, o desejo maioria dos brasileiros foi que nos mantivéssemos na oposição, e é isso que faremos. Faremos uma oposição incansável, inquebrantável e intransigente na defesa dos interesses dos brasileiros. Vamos fiscalizar, cobrar, denunciai"". Eis a segunda condição: disposição para a luta.
Mais do que nunca, desde que perderam o poder em 2002, os tucanos reúnem todas as condições para exercer uma oposição consistente. Com a popularidade de Aécio, seu carisma e sua disposição, aliados a uma mobilização popular praticamente inédita para os tucanos, o PSDB se completa com uma plataforma programática que, em certa medida, jamais mereceu contestação — tanto que o próprio PT, desde o primeiro governo de Lula, sem nenhuma autocrítica e com muita mistificação, a adotou na política econômica e na política social. Reside aí, aliás, uma das razões que levaram o PSDB à inércia: seu discurso mais ou menos social-democrata foi surrupiado por um PT que migrou da esquerda para o centro na mesma medida em que deixava de ser a legenda defensora dos trabalhadores e dos fracos para virar o partido dos desempregados e dos pobres.
Juras de oposição implacável, no entanto, não são inéditas no repertório tucano. Em 2002, com Lula eleito, os tucanos anunciaram a formação de uma equipe técnica para assessorar os parlamentares na tarefa de "fiscalizar, cobrar, denunciar". Chegaram a elaborar um documento com críticas premonitórias ao Fome Zero, programa com que o PT pretendia refazer a paisagem social do país e que acabou enterrado pelo Bolsa Família. Foi um bom início, mas logo os tucanos, sempre tão indolentes quando o assunto é oposição, desanimaram. José Serra, candidato natural a líder da tropa, foi passar uma temporada nos Estados Unidos, estudando em Prince-ton. A missão de sustentar o fogo ficou nas mãos do desfibrilado PFL.
Quando perdeu a eleição para Fernando Collor, em 1989, o PT levou a sério o papel de oposição. Inspirado na experiência inglesa do shadow cabinet, criou um governo paralelo, com um ministério completo cuja tarefa era contrapor-se às políticas colloridas. Tinha dezesseis "ministros". Durou até o impeachment de Collor, depois virou o Instituto Cidadania, que. por sua vez, organizou as Caravanas da Cidadania, com as quais Lula percorreu o Brasil. Seis anos depois das caravanas, tinha a faixa presidencial no peito. Oposição, como se vê, não é coisa impossível, mas dá trabalho. O PSDB, doze anos fora do poder, ainda não aprendeu a vestir o figurino de partido de oposição. Em 2010, quando Dilma foi eleita pela primeira vez, Aécio se apresentou como um líder da resistência. Como na semana passada, fez até discurso no Congresso. Parecia, no entanto, pedir desculpas por falar um pouco mais alto.
A experiência do shadow cabinet dos ingleses, na qual o PT foi beber depois de 1989, tem muito a ensinar. Começou a surgir na segunda metade do século XIX, quando os oposicionistas passaram a fazer reuniões informais para discutir suas posições. Depois, trans-formaram-se num grupo organizado, que deveria espelhar o que seria de fato um governo de oposição, com reuniões formais — sempre às 17 horas, todas as terças-feiras. Hoje, a composição do shadow cabinet é noticiada pela imprensa inglesa como a composição de um ministério de verdade. Os ministros paralelos, se não fazem um bom trabalho, são demitidos. Sua função não é só fustigar o governo. Em caso de vitória da oposição, o ministro paralelo tende a ser empossado como ministro oficial. Além de definir táticas e conceber políticas alternativas, o shadow cabinet serve como treino para o exercício do governo. Tony Blair foi membro do governo paralelo por anos a fio antes de tornar-se o mais longevo primeiro-ministro trabalhista da história inglesa.
A oposição não é um efeito colateral deletério da democracia. Está na sua essência. O aristocrata Benjamin Disraeü (1804-1881), duas vezes primeiro-ministro da Inglaterra, quando seu país era a potência hegemônica, no século XIX, sabia o valor de um governo e de uma opção. Em seu tempo, Disraeli. do Partido Conservador, travou batalhas memoráveis com William Gladstone (1809-1898). seu antípoda perfeito, lider do Partido Liberal que foi quatro vezes primeiro-ministro. Com a autoridade de quem esteve nos dois lados do balcão. Disraeli, cujo sucessor nas duas vezes em que comandou o governo foi o próprio Gladstone, assim definiu sua experiência: "Nenhum governo pode dizer que é um sucesso sem uma oposição formidável".
A oposição, porém, não se faz apenas nos gabinetes — faz-se nas ruas, como aconteceu em mobilizações históricas. como a campanha dos americanos contra a Guerra do Vietnã, nos anos 60, ou a imensa mobilização dos brasileiros pelas eleições diretas, nos anos 80. Nos gabinetes ou fora deles, a ausência de oposição eqüivale à presença de um poder hegemônico — e hegemonia é coisa do DNA petista. Se o PSDB pretende mesmo barrar as pretensões hegemônicas do PT, precisa aproveitar as condições
favoráveis de agora — nos gabinetes e nas ruas — e fazer o dever de casa. Urna oposição não nasce no grito, nem no embalo de 51 milhões de votos. Em 2010, os tucanos tiveram 43 milhões de votos — menos, mas ainda assim uma votação estupenda. No entanto, nada disso ensejou uma oposição organizada. Para chegar lá, o PSDB precisa estudar as razões da derrota e extrair as lições correspondentes. Na semana passada, Aécio fez questão de reclamar da campanha do PT — "a campanha da infâmia, da mentira". Mas acusar o PT de travar uma disputa que "chegou às raias do impensável" poderia explicar tudo se o PSDB estivesse amargando sua primeira derrota, e não a quarta consecutiva. É ululante que alguma outra coisa — que não a infâmia petista — está desterrando o tucanato.
As duas primeiras semanas de oposição tucana produziram um saldo controvertido. O PSDB começou mal ao pedir uma auditoria ao Tribunal Superior Eleitoral para examinar os votos do segundo turno. Levantou uma suspeita grave com base em nada e ficou com fama de perdedor chorão. Afinal, suas "desconfianças" quanto à "confiabilidade da apuração dos votos" só surgiram com a derrota, mas não quando Aécio foi para o segundo turno com uma votação surpreendente e inesperada até para ele mesmo. Passado esse equívoco, o PSDB acertou em cheio ao desassociar-se das manifestações de rua em que muitos cidadãos pediram o impeachment de Dilma e alguns celerados clamaram por uma intervenção militar. "Não sou golpista. Sou filho da democracia", disse Aécio, ao afirmar que não via fato concreto que justificasse um processo de impeachment.
É um desalento constatar que ao acerto de repudiar golpes e golpistas tenha se seguido um novo erro — um con-chavão, do qual os tucanos participaram, destinado a poupar a carcaça de uns apaniguados na CPI da Petrobras (veja o quadro ao lado). O conchavão foi selado no dia em que, da tribuna do Senado, Aécio condicionava a proposta de diálogo de Dilma à investigação e punição exemplar dos propineiros da Petrobras. Assim, vira piada pronta. Assim, o ex-presidente Fernando Henrique vai ter de escrever, mais uma vez, que a oposição existe para se opor ao governo.
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