domingo, 9 de novembro de 2014

Dilma e seu labirinto

Marcelo Sakate – Veja

Mateus, o evangelista, registrou em um tom que soa mais como ameaça do que mesmo conforto: "Pois todo o que pede recebe; o que busca encontra". Dilma pediu votos e os recebeu e, agora de volta a sua sala no Palácio do Planalto, guardada por três imagens de Nossa Senhora Aparecida, encontrou o que buscou com tanta volúpia na campanha eleitoral: o segundo mandato. Antes mesmo que ele comece, porém, a presidente está sentindo os primeiros efeitos de pedir mal, como alertou outro apóstolo, Paulo.

Dilma viu Aécio Neves, o candidato que ela derrotou, ser recebido em triunfo em Brasília, aclamado como líder, enquanto ela se isolou no Palácio, com a melancolia de quem não tem o que comemorar verdadeiramente por, talvez, não ter perguntado a si mesma antes, não "como" ganhar as eleições, mas "por quê" e "para quê". Reeleita, ela ainda não tem as respostas. e, por isso, depois de abertas as urnas, a presidente parece fechada em um labirinto.

Seu espaço de manobra é restrito. De um lado, a economia colhe resultados ruins que, em grande parte, ela mesma plantou. De outro, os problemas políticos são maiores, com desconfianças insufladas em seu próprio partido, o PT, e ambições magnifica-das entre os aliados. Para retomar o comando político, Dilma terá de ceder na economia, liberando as energias do mercado, cortando gastos, aliviando o peso do Estado sobre os ombros dos brasileiros. No fundo, ela tem de esquecer os dogmas de seu partido e suas próprias convicções econômicas e executar o projeto que ela derrotou nas urnas — o do seu adversário Aécio Neves. Na semana passada, a presidente, em entrevista aos principais jornais do país, acenou com a promessa de ajustes: "Vamos fazer o dever de casa. Vamos apertar o controle da inflação." O Banco Central, logo depois da eleição, elevou a taxa básica de juros, a Selic, para 11,25% ao ano, justificando a decisão com a ameaça de que a alta nos preços superasse os limites da meta oficial. Até outro dia, a então candidata afirmava que eram os tucanos que "plantavam inflação para colher juros". Na sexta-feira, a Petrobras reajustou o preço da gasolina e do óleo diesel, em outra medida impopular que, apesar de urgente, foi jogada convenientemente para depois das eleições.

Esses ajustes, que poderiam ser classificados de "estelionato eleitoral", apesar de a presidente rejeitar tal classificação, eventualmente podem sinalizar um mea-culpa, o reconhecimento de que o quadro econômico não é na realidade tão favorável quanto aquele apresentado anteriormente. Dado o volume de desequilíbrios acumulados, entretanto, esses ajustes são ainda tímidos e insignificantes para restabelecer a confiança dos empresários e dos investidores, e sem essa confiança negócios deixam de ser feitos, projetos não saem do papel e a economia não cresce de maneira saudável e sustentável.

A crença na estabilidade monetária e na situação fiscal do governo é um requisito essencial para ancorar qualquer plano de investimento de longo prazo. Por isso, é aguardado ansiosamente o nome do sucessor de Guido Mantega no comando da Fazenda. A depender do nome. poderá ficar claro se Dilma está disposta a assumir uma nova trajetória, mais parecida com o início do mandato de Lula. ou se seguirá fazendo "mais do mesmo". Uma sinalização de um governo mais austero — e mais distante da cartilha clássica do PT — seria a nomeação do ex-pre-sidente do Banco Central Henrique Meirelles para o cargo. Seria um ministro que com toda a certeza contaria com o respaldo dos investidores, capaz de restabelecer, da noite para o dia, a confiabilidade perdida pelo governo. Meirelles tem o apoio de Lula. Não é para menos. Ele foi o fiador da estabilidade monetária e dos bons dias da economia que contribuíram para a popularidade elevada de Lula no governo. Entretanto, Meirelles seria alvo de ataques constantes do fogo amigo de parte do PT, além de ser um antigo desafeto de Dilma. Ambos não se bicavam quando eram colegas de ministério de Lula. Tê-lo em seu governo significará para a presidente renunciar a parte de seu poder.

Desconfiança custa caro
O maior risco de retrocesso para a economia brasileira é a perda do "grau de investimento", atestado internacional emitido por agências especializadas que representa o grau de confiabilidade de um país como devedor. Em termos práticos, esse selo dá a chancela de que os maiores fundos de investimento e de pensão do mundo precisam para justificar a escolha do Brasil. Isso ocorre porque os estatutos desses fundos limitam muito ou mesmo vedam a aplicação de dinheiro em países ou empresas que não sejam classificados como "grau de investimento". 0 maior fundo da Pimco, uma das principais gestoras de recursos do mundo, só pode destinar a países sem o grau de investimento 5% do total de dinheiro sob sua responsabilidade. Se o Brasil for rebaixado, os investidores terão de imediatamente se livrar de títulos da dívida brasileira. Livrar-se como? Colocando os papéis à venda. Para evitar que os títulos virem mico por excesso de oferta, o governo vai ter de aumentar os juros de tal modo que o rendimento dos papéis supere a insegurança dos investidores. A dívida pública, já em patamares perigosos, aumentaria ainda mais. Para as empresas brasileiras, as conseqüências também seriam catastróficas. Primeiro, pelo efeito recessivo na economia. Depois, pelo aumento exponencial das dívidas delas em dólar e pelo custo de captação de recursos internacionais. O Brasil tem 20% dos títulos de sua dívida (400 bilhões de dólares) nas mãos de investidores estrangeiros. Além disso, só fecha as contas neste ano com mais 84 bilhões de dólares de poupança externa. Se perder a confiança internacional, o Brasil quebrará.

Os ajustes feitos até aqui. ainda módicos, já provocaram reações entre os quadros mais à esquerda do PT e também em meio à intelectualidade que apoia Dilma. "A presidente parece não ter percebido que os dizeres contam e que o preço de afirmar uma coisa e fazer outra é muito maior do que parece", escreveu em artigo André Singer. ex-secretário de Imprensa de Lula. Um grupo de economistas encabeçado por Maria da Conceição Tavares e Luiz Gonzaga Belluzzo divulgou na semana passada um manifesto que rejeita que o governo adote "juros altos, câmbio valorizado e cortes excessivos de gastos públicos" como meios para tirar o país do baixo crescimento. O texto, assinado por "economistas pelo desenvolvimento e pela inclusão social", afirma que "a austeridade agravou a recessão, o desemprego, a desigualdade e o problema fiscal nos países desenvolvidos mesmo tendo sido acompanhada por juros reais baixíssimos e desvalorização cambial". É uma pena para Dilma que esses economistas só saibam dizer a ela o que "não fazer". Quando tiveram chance em governos passados de fazer alguma coisa, eles afundaram o país — claro, puseram a culpa no ambiente externo e na ganância dos empresários. Mas fazer isso Dilma já sabe. Não precisa de conselhos.

Para Rafael Cortez, analista politico da consultoria Tendências, duas forças vão determinar o grau de intensidade dos ajustes: a pressão da piora na economia e a reivindicação popular por serviços públicos melhores. "No cenário mais provável, serão feitos ajustes pontuais na política econômica, mas isso mais como uma reação do que por iniciativa própria da presidente." Para ganhar a eleição, Dilma atacou a autonomia operacional do Banco Central e chegou a afirmar que, em caso de vitória de Marina Silva, quem mais a ameaçava naquele momento, o comando da economia seria entregue aos bancos. Funcionou como retórica. Não vai funcionar como política econômica.

"Lula e Dilma falaram muito da herança maldita de FHC e do PSDB, mas ela terá de lidar no segundo mandato com uma herança negativa de sua própria autoria", avalia o cientista político Murillo de Aragão, presidente da consultoria Arko Advice. Ele mapeia as maiores dificuldades de Dilma à frente. A primeira é aprender a lidar com a base aliada, propensa a rebeliões, em parte como decorrência da falta de aptidão da presidente para negociar com deputados e senadores. A segunda é a falta de credibilidade do governo, resultado da incapacidade da presidente de entender o funcionamento das economias de mercado em sociedades abertas. A terceira é a que domina o ambiente político: como sobreviver ao petrolão? Paulo Roberto Costa, ex-diretor da Pe-trobras, e Alberto Youssef, o doleiro encarregado do caixa do esquema de corrupção na estatal, continuam fornecendo resmas de provas à Justiça. Costa foi íntimo do poder nos governos de Lula (que o chamava, carinhosamente, de Paulinho) e de Dilma. Pelas mãos de Youssef, segundo ele, passaram recursos que financiaram a campanha de Dilma. "Pois todo o que pede recebe; o que busca encontra."

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