- O Estado de S. Paulo
Ante os fatos estarrecedores que surgem na apuração do escândalo da Petrobrás, o governo empenha-se em tentativas disparatadas de ora borrar a singular gravidade do esquema de corrupção descoberto, ora atribuir a si os méritos pelo desenrolar desimpedido dos trabalhos da Polícia e do Ministério Público Federais, como se isso não se devesse à autonomia constitucionalmente assegurada a esses órgãos do Estado brasileiro. Melhor teria feito o governo se não tivesse solenemente ignorado, desde 2009, os alertas do TCU de que havia algo de muito errado acontecendo na maior empresa brasileira.
O disparate chega a tal ponto que dias atrás o ministro da Justiça se aventurou em análise sobre a "cultura brasileira" para "explicar" as causas do petrolão. A culpa seria de todos nós, supostamente tolerantes com a prática diária de atos de corrupção, como se o assalto continuado aos cofres da Petrobrás, perpetrado pela associação criminosa de agentes públicos, atores políticos e um cartel de empresas privadas, fosse fenômeno equivalente ao pagamento de propina ao guarda da esquina para evitar uma multa de trânsito. Por mais reprovável que seja este ato, uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa, muito mais grave aquela, por suas repercussões gerais, do que esta. Trata-se de uma obviedade que não deveria escapar a um homem esclarecido e normalmente sensato como José Eduardo Cardozo. É que mesmo as mais lúcidas cabeças do governo andam confusas nos dias que correm.
O rei está nu. No caso, a nudez decorre da revelação de um padrão de desvio de recursos públicos que é novo não apenas por sua escala, mas também porque é parte integrante de um fenômeno político inédito no Brasil: a formação de um bloco de poder articulado por um partido com máquina política e sindical, que mobiliza os instrumentos de um Estado em expansão desregrada para cooptar setores do empresariado e da sociedade e assim tornar viável seu projeto de hegemonia política duradoura. A captura de empresas estatais, agências reguladoras, bancos públicos e fundos de pensão é uma operação constitutiva desse modelo e de sua perpetuação (não um acidente de percurso). Nele há uma peculiar acoplagem dos interesses políticos dominantes à ideologia de que cabe ao Estado o papel de líder e motor do desenvolvimento. Os ideólogos de boa-fé, imbuídos do propósito de fazer a grandeza do Estado e da Nação, não raro confundidos como uma só e mesma coisa, preparam inadvertidamente o terreno ideológico e operacional, quando têm poder para tanto, em que vicejam esquemas de corrupção nos moldes do petrolão.
Com a bonança econômica dos anos Lula, propiciada em boa parte por condições externas muito favoráveis, com a oposição enfraquecida social e politicamente, o modelo rodou a mil por hora. Havia condições financeiras e políticas para contemplar todos os apetites, os legítimos e os ilegítimos. Como costuma acontecer em momentos de euforia, os operadores do modelo - e, por favor, não confundamos os "de boa-fé" com os "de má-fé" - perderam a noção dos riscos econômicos e/ou criminais em que incorriam. Os "de má-fé" experimentaram até recentemente a sensação de impunidade que só o poder aparentemente irrefreável é capaz de oferecer.
O petrolão não pode ser analisado como um ato isolado. Ele é o sintoma mais grave de uma doença que se instalou nos fundos de pensão, nos quais o PT passou a controlar a representação governamental e dos empregados, quando antes havia equilíbrio de forças; nas agências reguladoras, em que a nomeação por critérios técnicos foi substituída pela ocupação partidária; nos bancos públicos, cujas diretorias se abriram aos partidos, a ponto de o tesoureiro de um deles ter sido recentemente nomeado para uma das vice-presidências da Caixa Econômica Federal - para ficar apenas em algumas referências.
Dizer que já havia corrupção nas relações entre agentes públicos, atores políticos e empresas privadas antes de o PT chegar ao poder é afirmar o óbvio. Nessa matéria nenhum partido é puro, nem aqui nem em nenhuma parte do mundo. Não se trata, portanto, de apontar mocinhos e bandidos, mas de verificar em que medida essas relações vão ganhando forma de organização criminosa e penetrando as estruturas do Estado e do sistema político. No limite, dá-se a constituição de um poder paralelo e oculto que comanda o jogo político e empresarial, sob a carapaça da legalidade formal do Estado democrático. É o que aconteceu na Itália, onde até o venerando Giulio Andreotti, diversas vezes primeiro-ministro, se tornou parte integrante da rede mafiosa desbaratada pela Operação Mãos Limpas, no início dos anos 1990.
É desse risco que o Brasil possivelmente se está livrando com a operação Lava Jato, se ela produzir os efeitos desejados na esfera penal. A corrupção que ganhou forma nos últimos 12 anos não é moralmente mais condenável do que a que a precedeu.
Mas é politicamente mais perigosa, pela imbricação sistemática de partidos,
instituições do Estado e cartéis de empresas de grande porte, num esforço coordenado para desviar recursos públicos com o fim último de perpetuar no poder o mesmo sistema que engendrou ou permitiu a ação criminosa organizada. Não é que exista um gênio do mal por trás de tudo isso. O que temos é uma lógica de poder que, se não for quebrada, produzirá um mostro que possivelmente fugirá ao controle mesmo dos que se imaginavam capazes de controlá-lo.
Claro que reformar o sistema político é imprescindível para reduzir as chances de novos petrolões e fortalecer a democracia. Para isso, no entanto, nada é mais importante agora do que traçar com nitidez a divisória que separa a legalidade democrática da atividade criminosa, punindo exemplarmente os que cruzaram essa fronteira, não importa a cor partidária que tenham ou os interesses que representem.
Superintendente executivo do iFHC, colaborador do Latin american program do Baker Institute of Public Policy da Rice University, é membro do Gacint-USP.
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