- O Estado de S. Paulo
Em discurso para a militância, na presença de Dilma Rousseff, durante a campanha eleitoral deste ano, Lula disse que já se via com ela em 2022, nas comemorações de nossos 200 anos de Independência, defendendo tudo o que haviam conseguido conquistar "nos últimos 20 anos". É perfeitamente legítimo a qualquer pessoa expressar de público suas "memórias do futuro", para usar a bela expressão de Borges para caracterizar desejos, expectativas, sonhos e planos, quer se realizem ou não.
Mas antes de chegar às eleições de 2022 há que passar por 2018. E não será fácil de explicar então as conquistas dos "últimos 16 anos" como se fossem um coerente e singular período passível de ser entendido como um todo, como a marquetagem política tentou na eleição recente, com o discurso dos "últimos 12 anos". Porque Lula 1 foi diferente de Lula 2, Dilma 1 foi diferente de Lula 2 e Dilma 2 será diferente de Dilma 1 - e o mais difícil dos quatro quadriênios. Quem viver verá. Ou já está vendo.
Este artigo procura olhar à frente. Afinal, é nisto que os brasileiros estão interessados: no que esperar para 2015 e adiante, no quadriênio. A escolha pela presidente Dilma de Joaquim Levy para ministro da Fazenda (excelente escolha, diga-se de passagem), a confirmação de Alexandre Tombini no Banco Central e a indicação de Nelson Barbosa para o Planejamento (que havia deixado o cargo de vice-ministro da Fazenda, dizem, por discordar do excesso de manipulações contábeis nas contas fiscais do governo) sugerem que estavam certos os que insistiam, há muito tempo, que a perda da credibilidade da política governamental nessa área - para não falar de outras - era de tal ordem que o discurso do "mais do mesmo", no qual o atual governo insistiu até 26 de outubro, negando-se a reconhecer seus cada vez mais graves problemas (condição sine qua non para resolvê-los) estava com seu prazo de validade estampado no rótulo - qualquer que fosse o resultado das urnas.
Agora, olhando o difícil começo de Dilma 2, vale um rápido lembrar de traços essenciais dos começos de Lula 1, Lula 2 e Dilma 1, não por gosto pelo passado ou por um enganoso "recordar é viver", mas porque há nessa perspectiva, a meu ver, algo relevante para avaliar os desafios do próximo quadriênio. Muitos dos protagonistas são os mesmos, o que talvez desperte algum interesse neste "exercício de memória", que deve sempre ser feito - e por qualquer um - lembrando trecho da Oração dos Velhos: "Senhor, não me atrevo a reclamar uma memória melhor, dê-me porém uma crescente humildade e menos suscetibilidade quando a minha memória esbarrar nas dos outros".
Lula 1 beneficiou-se, e muito, como é ou deveria ser sabido, de uma combinação positiva de três ordens de fatores: uma situação internacional extraordinariamente favorável, uma política macroeconômica não petista seguida por Antônio Palocci (ministro da Fazenda) e Henrique Meirelles (presidente do Banco Central) e uma herança não maldita de mudanças estruturais e avanços institucionais alcançados na vigência de administrações anteriores - inclusive programas na área social que foram mantidos, reagrupados e ampliados. Lula 1 começou a terminar quando saíram do governo simultaneamente, além do ministro Palocci, o vice-ministro Murilo Portugal, seu secretário do Tesouro, Joaquim Levy, e seu secretário de Política Econômica, Marcos Lisboa, entre outros, em março de 2006.
Lula 2 assumiu com nova equipe e nova concepção sobre o crucial papel do Estado e de suas empresas no desenvolvimento do País. O PAC e suas sucessivas e cada vez mais ambiciosas versões foram, em parte, a expressão dessa nova postura. A crise internacional, agravada após setembro de 2008, forneceu um grande álibi para a ampliação da política dita "keynesiana" que vinha sendo praticada desde 2007. O que levou aos insustentáveis 7,5% de crescimento em 2010. Só possível porque tivemos (efeito China) outro extraordinário surto de melhora nos termos de troca.
Dilma 1 começou 2011 tendo de lidar com consequências do superaquecimento da economia de fins de 2009 a 2010. Ao longo de parte de 2011 foi feito um esforço de conter o expansionismo excessivo (algo que, até hoje, muito do fogo amigo dos seus considera um equívoco). A "nova matriz da política macroeconômica", as indefinições e idas e vindas da política de concessões ao setor privado em infraestrutura, os quase cinco anos perdidos pela ausência de licitações para exploração do petróleo, os vários tipos de ônus impostos à Petrobrás e a desastrada mudança no setor de energia elétrica ao final de 2012 e suas consequências impuseram pesada herança que Dilma 1 deixa para Dilma 2.
Mas situações difíceis não significam inexistência de opções. Há necessidade de sinalizações sobre elas - e para os próximos quatro anos. Não se trata apenas, como já disseram lideranças do governo, de um temporário esforço para "acalmar mercados" e agências de rating até que voltem a soar os atabaques das próximas eleições, muito antes de 2018. Há que sinalizar os próximos quatro anos. Nesse sentido, serão importantes os termos do discurso de posse, bem como a escolha de presidentes de empresas estatais e, particularmente, das equipes de ministérios-chave, como Minas e Energia, Educação, Trabalho, Relações Exteriores, e de outros dentre os mais de 30 ainda por definir.
Lula, reeleito em outubro de 2006, só completou a formação de seu Ministério, se me lembro bem, em março de 2007. Dilma, reeleita, terá muito mais dificuldade e menos tempo para formar um Ministério à altura do momento, e que possa chamar de seu. Num contexto que, por motivos cada vez mais visíveis, será muito provavelmente o mais difícil quadriênio dos efetivamente decorridos "últimos 20 anos".
Bom Natal a todos!
Pedro S. Malan, economista, foi Ministro da Fazenda no governo Fernando Henrique Cardoso.
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