- O Estado de S. Paulo
Desarmada a pauta-bomba montada pelos congressistas, falta cuidar das bombas mais perigosas e mais difíceis de neutralizar. Falta enfrentar o desarranjo orçamentário produzido em décadas de imprudência e agravado pelos governos petistas e, ao mesmo tempo, desmontar os impasses das políticas fiscal e monetária.
Do lado fiscal, o desafio imediato do governo, depois de aprovado pelo Congresso um déficit primário de até R$ 119,9 bilhões em 2015, é produzir no próximo ano um superávit de R$ 43,8 bilhões para o pagamento de juros. Esse resultado equivalerá, segundo cálculos oficiais, a 0,7% do produto interno bruto (PIB). Será uma façanha considerável, num cenário de baixa atividade e escassa geração de impostos. Já se estima para o próximo ano uma contração econômica na faixa de 2% a 2,5%. Com isso, a base normal da tributação deverá mais uma vez encolher.
Mas essa façanha, se o governo conseguir fechar as contas segundo seus planos, servirá apenas para evitar um desastre maior e dar algum fôlego para um trabalho mal começado, ou ainda, de fato, nem começado.
Uma séria arrumação das contas públicas é hoje um objetivo secundário para o governo. A luta é para fechar as contas, em 2016, com o resultado prometido. A presidente Dilma Rousseff e seus ministros insistem na recriação do imposto do cheque, a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF).
Mesmo críticos dessa aberração tributária têm apoiado, nas últimas semanas, a pretensão do governo. Não há, argumentam, outro meio de acertar a contabilidade no próximo ano. É uma afirmação discutível, mas o vice-presidente, o peemedebista Michel Temer, já se declarou a favor da recriação do tributo por um período limitado. Dá para acreditar numa CPMF usada como remédio emergencial e realmente descartável?
Se esse imposto reaparecer, e especialmente se for partilhado com Estados e municípios, será muito difícil enterrá-lo de novo. Como a cobrança é fácil e a sonegação é trabalhosa, o governo dará por superada uma parte dos problemas, a ambição do ajuste será rebaixada e mais uma distorção será incorporada, ou reintroduzida, na economia nacional.
Não se trata, no caso da CPMF, apenas de “um imposto a mais”. Esse tributo é uma aberração, porque incide sobre a simples movimentação de recursos e, na maior parte dos casos, sobre o mero ato de pagar. Paga-se o tributo simplesmente porque se paga por uma compra. O imposto aberrante e cumulativo incide, em cada operação, sobre um preço já onerado por uma porção de encargos fiscais. Essa ampla deformidade é a razão principal para uma pessoa razoavelmente informada rejeitar a CPMF. O ministro da Fazenda, doutor em Economia, deve saber disso. Se perguntou por que os contribuintes rejeitam essa monstruosidade, deve ter sido por gozação.
Qualquer solução de emergência servirá apenas para facilitar a travessia de um período muito difícil e, é claro, para impedir ou limitar a piora do endividamento. Mas a arrumação efetiva das contas públicas é uma tarefa muito mais ampla e politicamente mais complicada. Deve incluir, por exemplo, a eliminação ou redução das vinculações fixadas por lei ou pela Constituição.
É tolice, em termos administrativos, amarrar porcentagens da receita a despesas, por exemplo, com educação e saúde, porque as prioridades podem variar. Além disso, verbas vinculadas facilitam o desleixo na elaboração de programas e projetos e abrem espaço para o desperdício e a corrupção. “Já que o dispêndio é obrigatório” é frase introdutória de muita bandalheira e de muito desperdício.
Desperdiçar também é injustificável, quando o dinheiro é escasso e as necessidades, tão amplas.
A rigidez orçamentária é um velho, bem conhecido e quase nunca atacado problema brasileiro.
Vinculações são só uma parte da questão. Outros componentes importantes são a estabilidade do funcionalismo, a inércia da maior parte do custeio e, naturalmente, as normas da Previdência.
A última alteração séria no regime de aposentadorias ocorreu nos anos 1990, com a criação do fator previdenciário. Nada se fez, depois disso, para tornar o sistema sustentável em prazo mais longo, mas surgiram várias iniciativas para torná-lo mais custoso. Uma das últimas foi a tentativa de vincular as aposentadorias à política de reajuste do salário mínimo. A presidente vetou essa mudança, parte da pauta-bomba do Congresso, e o veto foi mantido na semana passada.
Esforços para rever o custeio, aperfeiçoar a elaboração e a gestão de programas e projetos e tornar o serviço público mais produtivo devem ser componentes importantes de qualquer política séria de arrumação orçamentária. O ministro da Fazenda tem mencionado alguns desses tópicos, como a revisão dos gastos, mas pouco ou nada se tem feito para elevar a qualidade e a eficiência do uso dos meios públicos. Ao contrário: o relaxamento da administração – e, portanto, da despesa, das transferências e dos incentivos fiscais – foi uma das marcas da política federal no período petista.
A inflação alta e persistente é uma das consequências dessa política e um dos componentes do imbróglio econômico. Enquanto se mantém o desarranjo das contas públicas, a política monetária é o único instrumento disponível para conter a alta de preços. Seria um risco enorme, portanto, baixar os juros. Um sinal de complacência poderia ser desastroso. Mas há outro lado nessa história. Manter a taxa básica em 14,25% dificulta a reativação da economia, limita a geração de impostos e, além disso, realimenta a dívida pública. Enquanto o governo continua patinando na política fiscal, o Banco Central tem pouco ou nenhum espaço de ação, porque qualquer mexida nos juros pode ser perigosa.
Comparada com os impasses criados pelo próprio governo, a pauta-bomba do Congresso era um pacote de bombinhas de São João.
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