- O Estado de S. Paulo
No artigo Patrimonialismo de longa data, publicado neste espaço no dia 26 deste mês, o professor Ricardo Vélez Rodriguez foi ao âmago do que considero a grande questão política brasileira. Magnífico no conteúdo e na forma, seu texto sugere os rumos de um debate sério, que, infelizmente, não teremos como encetar enquanto a sra. Dilma Rousseff tiver condições de obstruir o processo político. A preliminar a resolver é, pois, a renúncia ou o impeachment da primeira mandatária.
O foco do professor Vélez Rodriguez é o patrimonialismo, ou seja, o sistema de poder despótico que chegou até nós, na América Latina, na modalidade pós-feudal de Estados mais fortes do que a sociedade. Em 1958, o jurista Raimundo Faoro colocou esse tema na agenda intelectual brasileira ao abordá-lo em seu livro Os Donos do Poder - Formação do Patronato Político Brasileiro (Editora Globo, 1958). Mas entre colocá-lo na agenda intelectual e conseguir que o “patronato político” referido no subtítulo da obra se decida a reformar ou a desmantelar de vez tal sistema, vai evidentemente uma grande distância.
Na excrescente fase a que chegou, o patrimonialismo brasileiro pode ser apropriadamente descrito como um Estado-camarão, por analogia com o crustáceo decápode que todos conhecemos. O traço distintivo do Estado-camarão é sua cabeça avultada e mal suprida de substâncias culinariamente aproveitáveis. A tenacidade com que se incrustou no casco da nau brasileira recomenda que sua cabeça seja urgentemente decepada. Eis aí, em poucas palavras, a base da reforma que me parece necessária.
Com tal estrutura de Estado, salta aos olhos que o Brasil jamais saltará do grupo de países de “desenvolvimento médio” para o nível mais alto, no qual se situam os países de fato desenvolvidos.
A realidade aí está à vista de todos: um Estado que se apropria de uma parcela enorme da riqueza nacional, mas não consegue sequer educar direito as crianças; que “perde feio” (como disse outro dia o ministro da Saúde) na luta contra o Aedes aegypti; que insiste em assumir o controle direto de empresas nos setores que denomina de “estratégicos” - neste momento, a Petrobrás é o exemplo inevitável, e imagina dirigi-la por meio de um Conselho de Administração incapaz de enxergar uma manada de búfalos passando sob seu nariz.
Na esfera econômica, há que privatizar tudo o que o setor privado puder assumir de imediato, reduzindo ao mínimo o intervencionismo empresarial do Estado, fortalecendo as agências reguladoras e tratando de assegurar a previsibilidade e a segurança jurídicas.
Na área trabalhista, desmontar o sistema corporativista de inspiração mussoliniana - “herança maldita” da ditadura Vargas -, substituindo a unicidade (artigo 8, II, da Constituição federal de 1988) pelo pluralismo sindical e suprimindo o poder normativo da Justiça do Trabalho.
No plano político, descentralizar a Federação, com a devida reorganização das receitas e competências; fortalecer as Assembleias estaduais e reduzir correlativamente o tamanho do Congresso Nacional; e reorganizar no mesmo sentido o sistema de representação: relações Executivo x Legislativo moldadas segundo os princípios do parlamentarismo, voto distrital e alguma sobriedade na cômica permissividade da legislação partidária.
Num país escandinavo o modelo federativo de três níveis desenhado pelos constituintes de 1988 seria provavelmente saudável para a democracia. No Brasil - e nem falemos do Brasil da era petista! - tal expectativa carece totalmente de sentido. A discrepância entre a autonomia formal dos Estados e municípios, de um lado, e a dependência financeira real em relação à União, do outro, abastarda a vida política do País, transformando a maioria dos congressistas em “despachantes federais” e fomentando o espetáculo periódico de governadores e prefeitos acorrendo à capital em peregrinações de mendicância. Pereniza uma classe política subserviente, mas ao mesmo tempo propensa a espasmos anarquistas, como a “pauta-bomba” de 2014-2015.
Na afoiteza com que tentaram desincumbir-se de sua missão constituinte, os congressistas de 1987-1988 assumiram posições e abraçaram argumentos não raro bizarros. Entenderam que a realização do princípio democrático se reduzia praticamente a dilatar a base da pirâmide política, objetivo que se poderia alcançar com umas poucas decisões quase consensuais - a suspensão de algumas restrições e a extensão de certos direitos. Esqueceram-se de refletir, por exemplo: por que o Brasil, que à época contava 148 milhões de habitantes, precisava de 513 deputados federais, se os Estados Unidos, com 245 milhões, tinham (como têm até hoje) apenas 435? Será a House of Representatives americana menos eficiente ou menos democrática que a nossa Câmara dos Deputados?
Meramente numérica na aparência, tal inquirição diz respeito ao poder que se julga que os legisladores devam ter. Numa democracia digna do nome, o Legislativo precisa ser capaz de ombrear-se com o Executivo, mas tal poder dificilmente se tornará realidade se seus integrantes forem individual e coletivamente débeis. Em 1788, no Paper Federalista número 51, James Madison refletiu essa questão e sentenciou: “Com dez mil membros, mesmo a assembleia de Atenas não passaria de uma turba”. Se uma máquina do tempo o tivesse trazido a Brasília durante aquele saudável alvoroço, ele provavelmente diria aos nossos constituintes que a melhor forma de manter um Executivo discricionário e um Estado-camarão virtualmente indestrutível seria criar uma Câmara povoada por 10 mil deputados e dividida em 100 partidos.
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*Bolívar Lamounier é cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultores, é autor do livro ‘Tribunos, Profetas e Sacerdotes’ (Companhia das Letras, 2014)
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