- O Estado de S. Paulo
A senhora de óculos e cabelos brancos joga a moeda para cima. Com o “quarter” ainda no ar, a funcionária ensaia apanhá-lo, mas recolhe a mão na última hora. A moeda quica duas vezes na mesa e voa em direção à quina. Ela tenta agarrá-la, sem sucesso. A moeda cai no chão, corre entre vários pés e para. Cabeças se curvam. Alguém grita: “Cara!”. Assim, Hillary Clinton ganhou o delegado de um colégio de Des Moines, Iowa, para a convenção que escolherá o candidato dos Democratas a presidente dos EUA.
Não foi o único caso. Em pelo menos outros três “caucus” (as assembleias de eleitores do Partido Democrata que debatem e escolhem representantes no complicado sistema eleitoral norte-americano), a divisão entre os simpatizantes de Clinton e de seu adversário, o senador Bernie Sanders, foi tão completa que houve empate. As decisões acabaram sendo no cara-ou-coroa, documentadas em vídeos publicados na internet.
Hillary teve mais sorte do que Sanders, ganhou três dos quatro sorteios. Dessa maneira, o acaso agiu diretamente na escolha para o cargo político mais importante do mundo. Alguém poderá pensar que é absurdo deixar para a sorte definir quem será o homem ou mulher habilitado a iniciar, por exemplo, um apocalipse nuclear com o mero apertar de alguns botões. Mas esse nem é o caso mais radical de uso de sorteio na política.
Desde a democracia ateniense o sorteio é um método usado para preencher cargos públicos. Variam as regras, o universo sorteado, as funções a serem desempenhadas pelo sortudo e as circunstâncias, mas faz séculos que as mais diversas sociedades humanas têm dado sopa para o azar. Inclusive no Brasil. O que é o tribunal do júri, reunido em julgamentos de casos de assassinato, se não a escolha aleatória de pares do réu?
Pois justamente na hora de fazer justiça sobre o mais capital dos crimes os legisladores deram preferência a um grupo de cidadãos comuns em vez de um juiz, especialista em leis. Nesse momento crucial, a sociedade brasileira – entre outras – coloca o destino do acusado nas mãos da “sabedoria popular” em substituição ao conhecimento técnico dos togados.
Por que, então, não replicar essa metodologia para outras funções, como por exemplo, a escolha de deputados? Afinal, do ponto de vista da representatividade da população, nenhum outro meio é mais científico e preciso do que o sorteio aleatório. É a única situação em que todos têm exatamente a mesma oportunidade. Se levarmos em conta todo o eleitorado nacional, desconsiderando as fronteiras estaduais, cada brasileiro teria uma chance em cerca de 281 mil de ganhar uma cadeira na Câmara dos Deputados.
Só por comparação – já que os ganhos de um sorteado seriam maiores que os do outro, você decide qual –, a probabilidade de um jogador ganhar na Mega Sena fazendo apenas uma aposta simples é de 1 em 50 milhões. Seria 178 vezes mais fácil virar deputado.
De quebra, a proporção de mulheres subiria de 10% para 52% das cadeiras da Câmara. Assim como aumentariam as fatias de pobres, dos que pouco ou nada estudaram, de negros e de jovens.
Se o objetivo ao preencher funções públicas é a igualdade, o atual sistema definitivamente não é o caminho. A democracia tal qual a praticamos não foi criada para este fim. A eleição é, em tese, a escolha dos melhores, dos mais capacitados, dos mais aptos. O eleitor não escolhe um seu igual, mas aquele que, na sua opinião, mais bem desempenharia aquela função.
A questão é: os melhores têm sido os efetivamente eleitos? Ou são os que gastam mais dinheiro nas campanhas? Ou os que já são deputados? Ou, ainda, os filhos, netos e bisnetos de políticos? A resposta é “sim” para as três últimas perguntas. Ou seja, hoje a escolha de quem manda no Congresso já é feita na base da moeda. Só que, em vez de usar uma, gastam-se muitas
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Cara ou coroa?
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