- Valor Econômico | Eu & Fim de Semana
Vinte anos após o fim da Segunda Guerra, o filósofo alemão Theodor Adorno fez uma palestra que se tornou célebre. Intitulada "Educação após Auschwitz", aquela fala buscava entender o fenômeno terrível do genocídio nazista e propor medidas para tentar evitar a repetição de algo similar. Entre as soluções apresentadas, estava a da criação de um modelo educacional que ultrapassasse à própria escola e fosse voltado à construção da autonomia do indivíduo contra formas opressoras de homogeneização, bem como ao respeito da diversidade. Essas ideias são, infelizmente, cada vez mais atuais ante a manifestação concreta de diversas formas de barbárie no momento atual.
As lições trazidas pelo totalitarismo do século XX estão sendo esquecidas em várias partes do mundo. A expansão do jogo democrático nas últimas décadas gerou a (errônea) impressão de que, enfim, uma civilização mais liberal e pluralista tinha vencido a batalha.
Foi a ilusão contida no célebre artigo de Francis Fukuyama no fim da Guerra Fria. O paradoxal é que houve, desde os anos 1990, diversos avanços tecnológicos, econômicos e mesmo sociais que se globalizaram, melhorando a vida de milhões de pessoas, fato que tem convivido com uma regressão cultural com múltiplas faces.
Não faltam exemplos nas últimas semanas das barbáries do século XXI. O episódio de ódio racial em Charlottesville, nos Estados Unidos, comandado pelos chamados supremacistas brancos, nos fez lembrar o quanto a história pode retornar aos seus piores momentos. Supremacismo branco é um termo que traduz com perfeição a ideia contida no "Minha Luta", de Adolf Hitler: existe uma raça superior e ela deve se sobrepor às demais, custe o que custar. Por isso, nem precisa procurar suásticas pois a filosofia de extrema direita dos supremacistas é intrinsecamente nazista.
O ato de terrorismo em Barcelona, tal qual o 11 de Setembro, foi uma forma de crime contra a humanidade. Pessoas de diversas nacionalidades foram mortas, muitas de países cuja relação com a o conflito no Oriente Médio é próxima de zero. O Estado Islâmico, assim como a Al-Qaeda, é inimigo de tudo aquilo que não pensa como ele. Não se imagina que qualquer atentado na Europa será capaz de gerar o Grande Califado, para lembrar o pretenso objetivo último dos terroristas.
No fundo, o que está em jogo não é território, mas a luta contra o modo de vida ocidental, que, embora não seja superior aos demais, merece o respeito e o direito à expressão como as outras formas civilizacionais.
O Brasil não está livre dessa proliferação de barbáries. Duas notícias da semana que passou revelam bem isso. A primeira realçou o tamanho do feminicídio em São Paulo, o Estado mais desenvolvido do país: no primeiro semestre de 2017, um terço dos 272 homicídios contra mulheres foram praticados pelos namorados ou maridos. E ainda há muita gente nas redes sociais considerando que a defesa do direito das mulheres é algo que tem sido feito de forma exagerada. Em que lugar vivem essas vozes da internet? Tais pessoas admitiriam tal violência contra sua mãe, filha ou mulher que amam?
A outra notícia junta um punhado de preconceitos que têm se expandido nessa era de radicalismos. Em Santa Catarina, uma professora foi espancada por um aluno, de 15 anos de idade. A imagem de seu rosto ensanguentado é aviltante. Mas a surpresa maior veio depois: muitos comentários na internet a culpavam pelo ato, em razão de suas opiniões políticas. Um dos comentadores disse uma frase lapidar dos tempos atuais: "Se a senhora e vários outros professores se preocupassem em ensinar ao invés de imbecilizar os alunos, cenas como essa não existiriam nas escolas. Você é culpada por incentivar o desrespeito, a falta de educação, o vitimismo e o coitadismo".
O que é o vitimismo e o coitadismo? São duas expressões contemporâneas advogadas por aqueles cuja concepção de mundo não admite retomar o debate sobre injustiças e barbáries, pretéritas ou mesmo contemporâneas. Alguém que falar do efeito da escravidão sobre o racismo atual estará alimentando o vitimismo - afinal, já faz tanto tempo a abolição, e isso já não nos diz mais respeito, modernos que somos.
Apontar o dedo para as barreiras que existem para a ascensão social é puro coitadismo, porque basta o esforço pessoal que todos vencerão. Essa posição de uma nova direita que cresce na internet seria condizente com a dos historiadores revisionistas antissemitas, para os quais o Holocausto não foi tão cruel quanto se imagina e que não há provas completas sobre os mortos nas câmeras de gás.
Ao comentarista da internet citado acima, cuja resposta à violência é pedir que os professores se limitem a ensinar as matérias, Theodor Adorno já sabia como responder, criticando o pretenso modelo objetivo de pedagogia: "Qualquer debate acerca de metas educacionais carece de significado e importância frente a essa meta: que Auschwitz não se repita".
Adorno tinha razão: para evitar que surjam novos horrores como o de Auschwitz, é preciso combater os valores que geram a barbárie. Um deles é o preconceito frente ao diferente, que se transforma em ódio - é preciso eliminar quem não é como a gente, pregam os fascistóides de várias épocas. A incapacidade de lidar com a diversidade de opiniões e culturas torna tais pessoas e grupos incompatíveis com a democracia.
Quando a liberdade de expressão se assenta na possibilidade de propagar a superioridade de alguns, que devem vencer a qualquer custo (incluindo a violência ou morte de seus 'inimigos'), aumenta o risco da perversão da lógica democrática. Esse argumento vale para os extremismos à direita ou à esquerda.
Outro ponto realçado por Adorno como perigoso é o poder que o coletivo pode exercer sobre os indivíduos, especialmente sobre os mais jovens. Nada mais atual do que esse comentário do filósofo alemão, passados mais de 70 anos de sua palestra. Quando observamos a juventude que apoiou a candidatura de Donald Trump, por exemplo, fica muito claro o sentido de manada: todos os participantes do grupo devem se comportar como uma seita cujo objetivo é eliminar o que pensa diferente.
Dessa maneira, é preciso encontrar bodes expiatórios, causadores dos males sociais. Se no nazismo foram principalmente os judeus, na América trumpiniana são os imigrantes, os negros, os homossexuais e todos que possam atrapalhar o sonho idílico de um país puro.
Variantes desse fenômeno se espalham pelo mundo afora, incluindo o Brasil, onde jovens se escondem na internet para defender ideias que os aproximam do totalitarismo, sem que eles saibam disso. A raiva daqueles que não se sentem, de algum modo, incluídos no mundo de hoje, a vontade de expressar um ideário perfeito e homogêneo - a perigosa ilusão totalitária das utopias, diria o grande pensador liberal Isaiah Berlin - e a própria crença no poder da tecnologia como mecanismo que produz transformações completas são alguns dos combustíveis dos radicalismos intolerantes que prosperam cada vez mais.
Como enfrentar as múltiplas faces da barbárie produzidas nesse início de século XXI? Novamente recorrendo a Adorno, um primeiro passo é, desde a primeira infância, ensinar valores de convivência coletiva e responsabilização individual condizentes com uma civilização tolerante e justa. É interessante notar como tal proposta se alinha ao conhecimento científico atual. As pesquisas empíricas têm revelado não só que o ensino na tenra idade tem enorme efeito sobre o desenvolvimento educacional dos indivíduos como também é necessário preparar todos, desde cedo, para a construção de competências socioemocionais fundamentais para criar pessoas e sociedades melhores.
O ensinamento de comportamentos e valores relacionados à empatia, ao trabalho em equipe, à resiliência, à visão crítica em relação a qualquer ideia totalizante de mundo, entre os principais aspectos das competências socioemocionais, são peças-chave do discurso pedagógico elaborado na última década. Se isso for efetivamente implementado, talvez tenhamos menos radicalismos e intolerâncias nas próximas gerações. Também será preciso desmitificar o poder demiurgo da tecnologia, mostrando que o cara a cara das relações humanas continua sendo a melhor maneira de aprender a como respeitar os outros nos processos de comunicação.
Mas Adorno alertou que a educação contra comportamentos totalitários deveria ir além das escolas. Esse talvez seja o maior desafio: fazer com que as várias organizações da sociedade, do trabalho à igreja, passando pelos meios de comunicação, sejam capazes de construir relações humanas baseadas no respeito mútuo. Boa parte da nossa sociedade não foi educada, ao longo das últimas décadas, para esse tipo de convivência. No fundo, as barbáries do século passado, como o nazismo e o stalinismo, ficaram mais nos livros de história do que no DNA dos valores da sociedade contemporânea. Porém, nunca é tarde para mudar. Por isso, leitor, comece essa nova trilha conversando com quem você não concorda, sem que isso vire um jogo de ódios. Se todos derem esse pequeno passo, Auschwitz ficará mais longe de nossas vidas - e das de nossos filhos e netos.
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Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e coordenador do curso de administração pública da FGV-SP
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