- O Globo
O Rio viveu um sonho, agora é a hora do pesadelo real. Quando começou a bem sucedida política liderada pelo ex-secretário José Mariano Beltrame, a convicção geral é que enfim havia se encontrado a forma certa de lidar com o persistente problema da segurança pública no Rio. Ontem, foi o avesso do sonho: a Rocinha estava dominada por bandoleiros, que disputavam o território a tiros.
A boa notícia foi a reação do Estado brasileiro que mandou para lá as Forças Armadas e as forças policiais para cercar e entrar na Rocinha. O cerco militar a uma área em guerra é cena comum nos países em guerra. Mas a verdade é que o Rio vive uma guerra. Por alguns anos, imaginamos que o ambiente bélico havia ficado para trás com as políticas das UPPs. Elas ampliaram o direito de ir e vir de todos os habitantes da cidade. Os moradores se sentiam livres. Os jornalistas passaram a circular pelas favelas fazendo a rotineira cobertura de problemas de cidade, dos eventos culturais e das novidades da economia. Os moradores se visitavam. Era como se a cidade tivesse se alargado.
Pela geografia urbana do Rio, os pobres, a classe média e os ricos convivem em áreas contíguas. São vizinhos, apesar da estratificação social. Ninguém pode ficar alheio à tragédia que atinge as áreas onde o tráfico se instalou e instituiu novos poderes, nova lei, e uma rotina de terror. Encravada entre a Gávea e São Conrado, próxima ao Leblon e no caminho da Barra, a Rocinha sempre foi atraente para os donos do mercado de drogas. É gigante, labiríntica e tem uma saída por área de mata. Por tudo isso é estratégica, e as facções lutam pelo seu domínio. O seu imperador deposto, “Nem”, comanda de Porto Velho, Rondônia, e de dentro de um presídio federal, a luta para voltar ao poder. O espanto é que mesmo em um estabelecimento de segurança máxima, a 3.438 quilômetros de distância da Rocinha, um bandido consiga dar ordens aos seus comandados e alterar completamente a vida da cidade.
O sonho do Rio não foi vazio, nem mera ilusão. A maneira como Beltrame concebeu o enfrentamento do crime continua a fazer sentido. Ele propunha treinamento de policiais para a ação numa concepção ampla, não apenas para enfrentar o bandido, mas para proteger o morador e se aliar a ele. Defendia também a presença constante das forças policiais e não entradas esporádicas no meio de crise. Propunha que o aparato de segurança não ficasse sozinho nas comunidades, mas que fosse seguido pelos outros braços do Estado na área social. Usava o conceito de libertação do território, porque na verdade o crime submete e oprime o local onde se instala. Mas não adianta atacar uma área da cidade, enquanto os bandidos fogem para outra.
O fato de estarmos em retrocesso não significa que aquela proposta estava errada, mas apenas que houve o abandono da política. Outras tragédias nos acometeram, entre elas a corrupção. O governador de então patrocinava a política das UPPs enquanto cometia os crimes pelos quais acaba de ser condenado a 45 anos de prisão. Essa é uma das ignomínias de Sérgio Cabral, ele nos roubou também o sonho.
No agudo da crise é preciso fazer o que foi feito ontem: mobilizar todas as forças policiais e somá-las às Forças Armadas para proteger a população e combater o crime, que mantém os moradores reféns. Que as forças do Estado se entendam. O poder constituído não pode tolerar que outras autoridades se instalem, governem partes do país e submetam brasileiros ao seu domínio. No Haiti, os militares brasileiros atuaram em ações de segurança pública, porque o país não estava sendo invadido por nenhuma nação estrangeira, mas em crise interna. Eles podem atuar aqui também nesta área e nesta emergência. O intolerável é que generais queiram intervir e “impor” uma solução política ao país. Sua atuação no enfrentamento dos problemas nacionais, como o de segurança de uma grande cidade, é natural, faz parte das suas funções.
O Rio revive o pesadelo que já viveu. Ficou mais doloroso porque recentemente sonhamos com uma cidade pacificada, com o direito de ir e vir garantido, com convivência entre as pessoas de áreas diferentes da cidade. A pacificação era parte de um projeto muito maior de inclusão social. É preciso perseverar na busca de uma solução duradoura depois que for superada a crise aguda que vivemos.
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