sábado, 23 de setembro de 2017

De um Mourão a outro | Demétrio Magnoli

- Folha de S. Paulo

"Será que ele foi para o céu ou está no inferno?", perguntou-se Laurita Mourão, aos 88, por ocasião do lançamento de seu livro sobre Olympio Mourão Filho, seu pai. Como agente integralista, Mourão foi responsável pelo falsificado Plano Cohen, que serviu de pretexto para o golpe do Estado Novo; como general de Exército, comandou os blindados e as tropas da 4ª Divisão de Infantaria que partiram de Juiz de Fora para o Rio na madrugada de 31 de março de 1964. Hoje, um segundo Mourão, o general Antonio Hamilton, sonha com o primeiro, violando um tabu recente que separa os militares da tradição golpista.

O primeiro Mourão operou nos cenários turbulentos formados pelo levante comunista de 1935 e, décadas depois, pela Guerra Fria, acirrada com a Revolução Cubana de 1959. O segundo, em contraste, fala a um Exército reformado, que trocou a Doutrina de Segurança Nacional pela lealdade à Constituição. Aparentemente, nada existe em comum entre os dois, excluída a fortuita coincidência do nome. Contudo, a ausência de punição efetiva à pregação golpista do Mourão vivo indica que algo se move abaixo dos radares.

O general Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército, uma figura de nítidas convicções democráticas, sabe que, ao contrário do que alegou, as declarações de Mourão não foram "descontextualizadas". O "grande soldado, um gauchão" é reincidente. Às vésperas da deflagração do processo de impeachment, convocou o "despertar de uma luta patriótica" –e foi punido com a perda do Comando Militar do Sul. Agora, envergando a farda e enfatizando falsamente que reproduzia a visão do Alto Comando, lançou um ultimato ao Judiciário: se os tribunais não retirarem "da vida pública esses elementos envolvidos em ilícitos, nós teremos que impor isso". A circunstância de que respondia a uma pergunta provocativa, em ambiente mais ou menos fechado, não muda o sentido das coisas: como o primeiro, o segundo Mourão cultiva a planta da sedição.

Villas Bôas tem histórico irrepreensível. Nos meses do impeachment, desprezou solenemente o punhado de idiotas que, acampados nos arredores de sua residência oficial, clamavam por uma intervenção militar. Naquele intervalo conturbado, reagiu com discreta, mas clara, repulsa aos ensaios de intermediários de Dilma Rousseff que sugeriam a hipótese de decretação do Estado de Sítio. Nos dois casos, o comandante repetiu as sentenças constitucionais sobre as instituições e as funções das Forças Armadas. Agora, face à insubordinação de Mourão, reitera as mesmas sábias palavras –mas circunda suas implicações. Como os acampados de ontem, o general desordeiro tem direito a suas próprias opiniões, com a condição de que seja transferido à reserva.

Por que Villas Bôas limita-se a uma advertência protocolar, e mesmo ela, sob pressão do ministro da Defesa? O mistério remete aos movimentos, ainda desconexos, que escapam às telas dos radares. Numa ponta, a crise da Lava Jato provocada pelo desastroso acordo do MP de Janot com os irmãos Batista semeia dúvidas sobre o futuro do combate judicial à corrupção sistêmica. Na outra, a corrente periférica de golpistas civis procura estabelecer uma cabeça-de-ponte nos quarteis por meio da candidatura de Jair Bolsonaro, que se apressou em compartilhar a palestra de Mourão. Villas Bôas identificou uma ofensiva em pinça –e, equivocadamente, preferiu recuar até uma trincheira defensiva.

O primeiro Mourão operava para Getúlio Vargas, em 1937, e para o núcleo golpista do Alto Comando, em 1964. O segundo, por ora, apenas reproduz o discurso de grupelhos extremistas com baixa audiência militar –mas já ganhou a incauta solidariedade do respeitado general da reserva Augusto Heleno. Seria a hora certa de abatê-lo na estrada, cortando no nascedouro a articulação cívico-militar e reafirmando o tabu constitucional.
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É sociólogo

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