sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

José de Souza Martins: Última saída

- Valor Econômico | Eu & Fim de Semana

Sabemos que a crise social do mundo de hoje não se reduz ao que é o econômico e o político. Difícil é saber quais são suas consequências inesperadas. Ela cria incertezas no reconhecimento subjetivo da durabilidade da vida, das instituições, dos costumes. Uma área afetada pela expansão da modernidade, de que a crise é parte, é a da concepção de morte e da relação do homem com o sobrenatural. Aí, os que se acham donos da vida interferem, mas não mandam.

O modo de morrer, que é o do preâmbulo da morte, muda historicamente. Afeta âmbitos inesperados da vida. Um dos reflexos das mudanças no direito trabalhista e no previdenciário, antes mesmo de plenamente consumadas, é o das mudanças também em nossa cultura do morrer. Uma nova concepção de vida e de finitude está sendo gestada nas entrelinhas invisíveis da trama social.

Numa roda de amigos, em dias recentes, discutia-se a importância econômica do enxugamento dos direitos dos que vivem do trabalho, que oneram os ganhos das empresas. Permitirá a racionalização da produção. Alguém mencionou a robotização e a substituição de trabalho humano por máquinas e computadores. Hoje, o sistema produtivo pode produzir muitíssimo mais com menos gente. Mas já no século XIX se sabia que a lógica da produção moderna implica em produzir também cada vez mais seres humanos supérfluos.

Muito preocupado, alguém indicou que, ao mesmo tempo, a esperança de vida logo chegará aos 105 anos de idade. As mudanças nas condições de vida, o extraordinário desenvolvimento da medicina e dos medicamentos já permite a cura de doenças que há alguns anos eram fatais. Hoje, muitas pessoas vivem quase o dobro do que seus bisavós viveram. Os porta-vozes das instituições previdenciárias apontam o dedo para os idosos e dizem descaradamente que estão vivendo demais. Quem vai pagar os custos da dádiva da sobrevida possível?

Na roda, alguém mencionou os hospitais ultramodernos, onde se pode dar nova vida a quase mortos. O milagre da ressurreição é real. Porém, tem gente ocupando leitos e UTIs por tempo demais. A Justiça não leva em conta os custos desse progresso e dá sentenças para fornecimento de remédios caríssimos, importados, e permanências hospitalares longas de pacientes de recuperação improvável. Vivos, mas sem vida? Afinal, o que é a vida?

Fica-se sem saber se tudo melhorou muito ou se tudo piorou muito. Longa vida é possível, mas, dizem, morte ligeira é necessária. Acho que era isso que Karl Marx chamava de contradição da sociedade da acumulação: o importante não é viver, é ser barato.

Um caboclo do Mato Grosso explicou-me que, quando nascemos, já nascemos com a data de nossa morte definida. Não adianta querer ficar. O escritor baiano José Guilherme da Cunha, em seu livro "Esquina do Badu", narra costumes antigos de uma localidade do sertão de sua terra. Um deles, o das técnicas para reduzir a resistência dos moribundos à morte. Ali, há tempos, ainda havia o profissional da arte de bem morrer. O ajudante de Tânatos sentava-se sobre o ventre do teimoso, dificultava-lhe a respiração e o incentivava a fazer a passagem do tenebroso transe. Hoje o custo crescente do prolongamento da vida se encarrega de sentar na barriga dos moribundos para ajudá-los a desistir de ficar.

Esse cenário de terror é a mais importante evidência do que chamam de pós-modernidade. O que vem impondo quase imperceptíveis mudanças de costumes e invenções sociais para preencher o tempo e o espaço novos dos que têm a vida prolongada. O progresso econômico e a ciência abriram um abismo entre viver e sobreviver e criaram um modo de vida e uma sociabilidade muito peculiar, com novos personagens e novas rotinas: a mediação das cuidadoras, as visitas frequentes a hospitais e clínicas. Já há hospitais pouco diferentes de hotéis. A indústria da sobrevida prospera enquanto a vida é precarizada.

Uma nova humanidade de sobreviventes povoa a realidade, bem diversa daquela de anos atrás em que era curtíssimo o tempo que separava a manifestação dos primeiros sinais da morte próxima e o desfecho final do então chamado último suspiro. A médica Elizabeth Kubler-Ross fez a distinção entre o morrer e a morte. A morte é o instante derradeiro. O morrer é outra coisa. É o lento processo da singular sociabilidade entre os primeiros sinais da morte possível e a morte propriamente dita. É o mundo novo do morrer.

Temos hoje consciência de que a morte nos rodeia constantemente, de que a vida ficou mais longa e mais curta ao mesmo tempo. A incerteza relacionada com a morte e o medo que dela temos redefiniram valores sociais. A saída tem sido inventar um mundo de artimanhas e relacionamentos sociais para viver as alegrias do morrer.
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José de Souza Martins é sociólogo. Professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de "Uma Sociologia da Vida Cotidiana" (Contexto).

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