quinta-feira, 31 de maio de 2018

*José Augusto Guilhon Albuquerque: Embu das malasartes

- O Estado de S.Paulo (30/5/2018)

É preciso que o braço da lei recaia com vigor sobre os que planejaram esta guerra

Embu das Artes tem duas faces – ou duas almas, não sei. A primeira é a de uma cidade do interior, típica da primeira expansão paulista, com sua praça central, sua igreja centenária e suas ruas herdadas das estradas abertas pelos jesuítas e outros exploradores. A outra é a de uma típica periferia metropolitana, com dezenas de bairros-dormitório, mais ou menos sob controle de empreendedores da ilegalidade e do clientelismo político “de esquerda”. Separando as duas faces, que tentam ignorar-se sem sucesso, uma longa cicatriz a corta de leste a oeste: a Rodovia Régis Bittencourt, ou “a BR”, também conhecida por seu trecho na Serra do Cafezal como rodovia da morte, testemunha viva da incapacidade da Federação de atuar com um mínimo de decência em São Paulo desde os anos 30 do século passado.

Subitamente, como um raio em céu já bastante anuviado, Embu das Artes tornou-se, no palavrório repetitivo dos produtores de notícias, o símbolo perfeito da situação de pré-falência do País. O que era um Janus, ser mítico de duas cabeças, torna-se um Cérbero, o cão de três cabeças guardião da entrada do inferno. E alguém duvida de que é para o km 280 da Régis que os brasileiros estão olhando para compreenderem o que realmente se está passando e tentarem prever o que lhes destina o futuro imediato de sua sobrevivência como pessoas livres numa sociedade livre?

Não creio que tenha sido por acaso, dentre as centenas de pontos de violação do direito à própria subsistência, impostos por uma massa desorientada, por meio força e da ameaça de violência, que Embu das Artes se tornou o símbolo acabado do desamparo da cidadania e da falta de empenho do governo em governar. Como o restante do País, Embu das Artes tem sido governada há mais de uma década pelo PT, cujo último candidato a prefeito teve sua candidatura cassada pela Justiça, deixando o campo livre, nas eleições municipais de 2016, para um candidato suspeito de pertencer ao PCC. Este, condenado em segunda instância por crimes análogos aos imputados àquela organização, evadiu-se antes da posse, mas foi brindado com um habeas corpus emitido autocraticamente por um juiz do Supremo, conseguiu empossar-se e governar. Durante o julgamento do pedido de habeas corpus para evitar a prisão de Lula, o prefeito evadiu-se novamente e encontra-se foragido.

Desde a conclusão da alça sul do Rodoanel, a grande conexão entre o tráfego do Norte, Nordeste e Centro-Oeste do País com o Sul é o seu acesso à Régis no Embu, área abundante em extensas glebas disponíveis para abrigar grandes entrepostos de logística, o que redundou num grande facilitador do apoio logístico (e de inteligência) aos que ora ocupam a rodovia. Coincidentemente, o apoio popular, em parte espontâneo, vem-se avolumando – já que o antagonismo da população ao governo federal, e ao Estado em geral, é alto e tende a se agravar. Assim sendo, uma vez que todos os motivos de queixa podem, quase sempre com razão, ser atribuídos à desídia do Estado e de governos passados, a rejeição ao atual aumenta exponencialmente, muitas vezes com razão.

Esse apoio espontâneo também se beneficiou da proximidade de uma iniciativa da “sociedade organizada”, fortemente disciplinada e bem doutrinada, afiliada ao MTST de Guilherme Boulos, postulante presidencial do PSOL. Esses invasores, com apoio da prefeitura petista, vêm reivindicando a posse de uma área para assentamento de sua clientela e têm apoiado os ocupantes da rodovia.

Não estou sugerindo ter havido algum tipo de conluio entre todos esses diferentes atores, mas essa não é uma condição necessária para atuarem na mesma direção. Uma das mais antigas constatações dos conflitos sociais é que diferentes atores, por diferentes razões, até mesmo contraditórias – o que não é o caso aqui –, podem se opor ao mesmo adversário. Foi assim, aliás, que diferentes atores sociais e políticos, por diferentes razões e com diferentes objetivos, constataram que Dilma Rousseff já não estava governando e agiram em conjunto para formalizar seu afastamento.

Ninguém entendeu os objetivos dos carreteiros e o governo mobilizou todos os seus recursos exclusivamente para responder às suas demandas explícitas. Ora, os fatos mostraram, até um dia após a capitulação do governo, em 27 de maio, que cada vez que se satisfazia uma demanda surgiam outras, mais ou menos disparatadas: manifestamente, nem os próprios carreteiros têm clareza de seu objetivo, que, a meu ver, é sua própria sobrevivência, num cenário em que foram estimulados a se endividar além de sua capacidade financeira para atuarem num mercado artificialmente inflado, que os deixou indefesos quando o mercado entrou em recessão. A sobrevivência e, logo, a natureza do movimento o tornam inegociável e despreparado para planejar uma estratégia.

Ora, o movimento caracterizou-se como uma operação de guerra com uma estratégia longa, minuciosa e competentemente planejada. É quase ridículo atribuir a obstrução sistemática de muitas centenas de pontos de cerco tático aos centros de produção e distribuição de combustíveis em todo o País a um grupo de milhares de zappistas, por sua vez coordenados com os grupos empresariais que compreendem 2/3 do transporte de cargas. Ninguém duvida de que a comunicação via WhatsApp é intensa e fortalece a imobilidade, e a resistência a inimigo comum mas, por isso mesmo, inviabiliza a ação concertada.

As autoridades precisam de uma estratégia, que não se pode reduzir a atender às demandas do movimento, que jamais serão plenamente satisfeitas, porque o que está sob ameaça é a sobrevivência da autoridade pública e de uma sociedade livre. Para isso é preciso que o braço da lei recaia com vigor sobre os que planejaram esta guerra e mobilizaram os compreensíveis ressentimentos dos carreteiros autônomos para um conflito sem vencedores.
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*Professor titular da USP

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