A manobra relâmpago tramada na comissão mista que analisa a Medida Provisória (MP) n.º 842, com o objetivo de restabelecer o perdão de R$ 17,1 bilhões devidos por produtores rurais, é uma prova clara do descarado escárnio com que certos congressistas tratam a severa crise fiscal que tolhe as ações do governo, gera insegurança entre os agentes econômicos e retarda ou até impede a retomada do crescimento seguro da economia. Além de reinstituir um benefício que havia sido vetado pelo presidente da República, a manobra constitui um claro convite para o calote fiscal, ao permitir que o desconto da dívida seja estendido a compromissos que vencem até 31 de dezembro deste ano. Impor ao Tesouro Nacional despesas ou renúncias fiscais dessa grandeza, num momento em que estão evidentes as dificuldades para o cumprimento da meta de déficit primário e do teto para os gastos públicos, é um grave sinal de alheamento de parte dos parlamentares ou de pura esperteza política típica de ano eleitoral. Qualquer que seja o motivo, esse ato irresponsável, caso prospere e persista, imporá um custo exorbitante ao País.
A concessão desse perdão, que implica a necessidade de cortes de valor correspondente de outras despesas, inclusive em áreas que dependem criticamente de recursos públicos para atender a população, foi aprovada pelo Congresso no ano passado. Mas a medida foi vetada em janeiro pelo presidente Michel Temer “por contrariedade ao interesse público e inconstitucionalidade”, entre outras razões. A área técnica do governo também observou que os benefícios aprovados pelo Congresso, entre os quais a dispensa de exigência para o pagamento dos tributos em dia, “desrespeita os mutuários do crédito rural adimplentes com a União e com os agentes financeiros, podendo representar estímulo indevido ao risco moral”.
O veto, no entanto, foi derrubado em abril, por 360 votos a 2 na Câmara e 50 votos a 1 no Senado, resultado que não deixa dúvida sobre a percepção predominante no Congresso a respeito dos problemas financeiros do setor público. Passou, assim, a vigorar a Lei n.º 13.606, de 9 de janeiro de 2018, com benefícios aos produtores rurais, como remissão de dívida e concessão de rebates (descontos) para a liquidação em condições muito favorecidas de dívidas do crédito rural.
Para evitar o impacto dessa lei nas contas públicas, o que colocaria em sério risco o cumprimento da meta fiscal, e também para atender os agricultores familiares do Nordeste e da Amazônia, o governo baixou a MP 842, cujo efeito fiscal é estimado em R$ 1,6 bilhão.
Tudo o que o Executivo pretendia fazer foi, porém, atropelado pelo relator da MP na comissão mista do Congresso, senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE). Apresentado no momento em que a atenção do público em geral, e do meio político em particular, estava concentrada na proposta de reajuste dos ministros do Supremo Tribunal Federal – e, por extensão, de todo o Poder Judiciário e de outras carreiras públicas –, o relatório deverá ser examinado pela comissão mista na próxima terça-feira. Votações recentes, sobretudo a da derrubada do veto presidencial em abril, sugerem que a proposta do relator terá tramitação fácil não apenas na comissão mista, mas no plenário das duas Casas. Até lá, disse o relator, “vai se tentar um acordo” com os Ministérios da área econômica. Na exposição de motivos da MP 842, bem como nas razões do veto da proposta aprovada no ano passado pelo Congresso, a área técnica do Executivo mostrou que “não há espaço fiscal” para a concessão de benefícios tão extensos para os produtores rurais.
Mas nada disso parece suficiente para instilar um mínimo de senso de responsabilidade fiscal em parte dos parlamentares. Entre os benefícios propostos pelo relator da MP 842 estão descontos que podem chegar a 95% das multas. Mas o pior é a inclusão, pelo relator, de um dispositivo no projeto de conversão da MP 842 que abre a possibilidade de renegociação, com grandes benefícios, de compromissos não pagos com vencimento até 31 de dezembro. É um estímulo ao não pagamento dos tributos em dia.
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