Entrevista: Autor do livro 'Como as Democracias Morrem', Steven Levitsky afirma que cenário brasileiro inspira preocupação
Marco Rodrigo Almeida | Folha de S. Paulo
SÃO PAULO - Nada de tanques nas ruas, conspirações militares, palácios em chamas. Nas últimas décadas, dizem os cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblat, a maior parte dos políticos autoritários chegou ao poder pelo voto dos eleitores.
Nesse cenário, a democracia é corroída aos poucos, muitas vezes de maneira quase imperceptível. Os cidadãos continuam a votar, Constituições e instituições permanecem vigentes, mas os líderes encontram brechas para aumentar seus poderes, alongar mandados, enfraquecer órgãos de controle, intimidar oponentes e cercear a imprensa.
É o que ocorreu, com diferentes graus de retrocesso, em países como Venezuela, Peru, Rússia, Hungria e Nicarágua.
No livro “Como as Democracias Morrem”, Levitsky e Ziblat, ambos professores da Universidade Harvard, estudam esses casos e dão um passo além: sistemas constitucionais mais tradicionais também estão sujeitos a riscos.
Há razões para alarme nos Estados Unidos, argumentam, uma vez que a polarização partidária extrema entre os partidos Democrata e Republicano desgastou as normas democráticas, processo que teria se acelerado com a eleição de Donald Trump em 2016.
“Nenhum outro candidato presidencial decisivo na história moderna dos Estados Unidos demonstrou um compromisso público tão frágil com direitos constitucionais e normas democráticas”, afirmam os acadêmicos.
Na semana passada, Levitsky veio ao Brasil para divulgar o livro, cujo lançamento será em setembro pela editora Zahar. Em entrevista à Folha, diz que a democracia brasileira também inspiração preocupação: a convergência de recessão e escândalos de corrupção favorece a ascensão de políticos demagogos e potencialmente autoritários. Para o autor, este seria o caso de Jair Bolsonaro (PSL).
• O senhor diz no livro que o sistema político dos EUA já sobreviveu à Guerra Civil, à Grande Depressão, à Guerra Fria e a Watergate, mas que não tem tanta certeza de que sobreviverá a Trump. Ele é o maior perigo que o país já enfrentou?
Eu diria que é a primeira vez que elegemos alguém tão pouco compromissado com as normas constitucionais e democráticas. A combinação de um presidente demagogo e um quadro de polarização extrema, como o dos EUA, causa grande preocupação.
•Muitas propostas de Trump foram barradas por outros Poderes. Isso não prova que a democracia está funcionando?
Depende de que parte. Há instituições que funcionam bem e outras que funcionam menos bem. Eu diria que o Poder Judicial até agora está funcionando bem. O Congresso, como o tempo, tornou-se menos ativo, está controlado pelo partido de Trump, o Republicano.
Cada republicano que enfrentou Trump nos últimos dois anos foi destruído politicamente. Então, com o tempo, o Partido Republicano se converteu em um instrumento de Trump. O Congresso controlado por um partido que se tornou trumpista já não é um Poder independente.
• Instituições fortes e tradicionais, como a dos EUA, não são suficientes para controlar líderes autoritários?
Eu diria que instituições bem desenhadas não necessariamente são suficientes. Precisam ser complementadas por normas democráticas informais, não escritas. Focamos duas no livro. A tolerância mútua, o entendimento de que as partes se aceitem umas às outras como rivais legítimos, e a reserva institucional, a ideia de que os políticos devem ser comedidos ao fazerem uso de suas prorrogativas institucionais.
Isso é o que torna forte uma instituição. O problema é que essas normas vêm perdendo força com a polarização.
• O senhor diz que sempre houve candidatos demagogos e autoritários nos EUA, mas todos foram barrados pelos partidos. A exceção, em sua opinião, seria Trump. O que deu errado desta vez?
Houve uma mudança no sistema de seleção de candidatos. Historicamente os líderes partidários selecionavam os candidatos. Era um processo pouco transparente, pouco democrático, no qual os líderes mais importantes negociavam as candidaturas. Isso durou do princípio do século 19 até 1968.
A partir da eleição de 1972, introduzimos um sistema totalmente distinto de primárias, que é muito mais democrático, mais transparente, mais participativo, mas que limita o poder dos líderes partidários e dá muito poder aos votantes de cada partido.
O velho sistema tinha um monte de defeitos, mas funcionava muito bem como filtro para prevenir a chegada de figuras extremistas ou autoritárias. O novo sistema é mais democrático, mas sempre há o risco de que alguém famoso ou rico, como Trump, seduza o eleitorado.
• É perigoso dar muitos poderes aos eleitores?
Precisamos distinguir a democracia dentro dos partidos e fora dos partidos. Obviamente a democracia não existe se as eleições não estão nas mãos dos eleitores. Temos que confiar nos eleitores. No entanto, a respeito da decisão de quem será o candidato há um debate. Em muitas democracias no mundo, sobretudo na Europa ocidental, não ocorrem primárias, não há democracia dentro dos partidos. Os candidatos são escolhidos pelos caciques. Há aspectos muito positivos na democracia interna, mas também riscos.
• O livro aponta um paradoxo. A estabilidade política dos EUA, do fim da Guerra de Secessão aos anos 1980, foi alcançada às custas da exclusão racial. A luta dos direitos civis nos anos 1960 expandiu a democracia, mas provocou uma polarização social que hoje desafia o sistema. A democratização tornou-se uma ameaça à democracia?
Sim, esse é um paradoxo trágico. Nos EUA não houve o que chamamos de plena democracia até os anos 1960, quando os negros obtiveram o direito de votar em todo o país. Essa democratização é que iniciou a lenta polarização que há hoje entre os partidos Democrata e Republicano.
Sim, é um paradoxo, mas precisamos enfrentá-lo. Agora temos, como sociedade e sistema político, de nos adaptar às mudanças. Somos um país multirracial e cada vez mais diverso. Isso gera polarização, mas não há como andar para trás.
• Quais são os caminhos para diminuir a polarização?
O Partido Republicano tem um grande paradoxo também. Nasceu no século 19 sendo um partido antiescravidão, pró-direitos civis. Um século mais tarde, termina sendo um partido que basicamente representa brancos que temem a perda de sua maioria. É um partido branco, cristão e reacionário. Continuando assim, teremos um ambiente ainda mais dividido.
É necessário que o Partido Republicano decida ser mais diverso, decida atrair pessoas que não são brancas nem cristãs. Precisa falar com o país inteiro, e não apenas com uma parte dele.
• O bipartidarismo do modelo político dos EUA favorece essa polarização?
O número não necessariamente afeta a polarização. O Brasil se polarizou, apesar de ter 35 partidos. Uma certa fragmentação de poder político certamente é salutar para a democracia. No entanto, vemos que geralmente em países com muitos partidos quase todos são frágeis. Assim um líder populista acumula muito poder.
A vantagem dos EUA é que o Partido Democrata é uma oposição forte, tem cerca de 40% dos votos em todas as eleições, tem ativistas em todos os estados, tem verba. Uma das razões de tantos autoritários se consolidares no poder é a existência de uma oposição muito fraca.
• O senhor cita no livro alguns critérios que permitem identificar um político autoritário. Algum dos candidatos à Presidência no Brasil se enquadra nessa categoria?
Não sou especialista em política brasileira, mas fizemos uma investigação e constatamos que sim, que Jair Bolsonaro (PSL) se revela como potencialmente autoritário.
Ele já se manifestou a favor da ditadura militar, já pediu o fechamento do Congresso, disse que pretende governar com as Forças Armadas, questionou a legitimidade do sistema eleitoral. Para mim, são evidências de que não está comprometido com as regras democráticas.
• O que explica o apelo popular de tantos líderes autoritários?
O Brasil é um bom exemplo. Vocês enfrentam ao mesmo tempo uma tremenda crise econômica e a pior crise de corrupção que já se viu numa democracia. É uma tempestade perfeita.
Em momentos assim é muito comum a aparição de populistas que prometem limpar o sistema, combater a classe política. Resulta atrativo para a população. O desafio do Brasil é sobreviver à tormenta sem eleger um autoritário.
• Aqui também criou-se grande polarização com o impeachment de Dilma Rousseff. Que avaliação faz desse episódio?
Não diria que foi um golpe de Estado, não compartilho da posição do PT. Foi um processo legal, constitucional. Mas diria que foi algo politizado. Parece-me que o governo violou a lei, mas utilizaram isso como desculpa para justificar um ato essencialmente político. Embora seja legal, constitucional, o ato pode ser danoso à democracia.
Agora vocês têm um partido importante, o PT, que pensa que o outro lado está jogando sujo. Isso foi reforçado, claro, pela prisão de Lula. Então o PT, corretamente ou não, avalia que foi ilegitimamente removido do poder em 2016 e que agora seus rivais utilizam medidas antidemocráticas para evitar que voltem ao poder, destruindo seu candidato mais popular.
Não digo que o PT tenha razão. Entretanto, quando um dos principais partidos do país tem a percepção de que seus rivais estão jogando sujo, e parcela significativa da população pensa o mesmo, temos um problema de legitimidade bastante forte.
• O que fazer nesse cenário?
Não há uma só receita. A recuperação da saúde em uma democracia é inevitavelmente um processo lento. Alguns passos já podem ser tomados: os grandes partidos, PSDB e PT, têm que voltar a um lugar em que estavam entre 1994 e 2010, onde competiam, aceitavam-se mutualmente como rivais legítimos, podiam sentar, falar e negociar.
Não há saídas rápidas na democracia. Todos os processo são lentos, de construção de alianças. Tudo requer muito trabalho político.
Isso gera impaciência , pessimismo e certa nostalgia do autoritarismo. A democracia é sempre lenta, imperfeita, é um processo de negociação. Num país tão grande e heterogêneo como o Brasil, tudo inevitavelmente é super lento.
O problema é que alguns grupos ficam impacientes e tentam uma saída autoritária.
• O senhor está otimista em relação aos EUA?
Acreditamos que nossas instituições democráticas são fortes. Não somos Rússia, Turquia ou Venezuela.
A nossa democracia é muito mais dura de matar. Mas há razões para nos preocuparmos. Não somos pessimistas, mas sim preocupados.
• E em relação ao Brasil?
Sou mais otimista que muitos brasileiros [risos]. Creio que o regime democrático brasileiro na época pós-Collor, de 1994 a 2013, representou uma ampliação de direitos como poucas vezes se viu na América Latina.
É fato que hoje tudo parece estar na merda [risos], mas isso não significa que todas as conquistas anteriores estejam perdidas. Como nós nos EUA, aqui também vocês precisam ser bastante vigilantes.
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Steven Levitsky, professor de ciência política da Universidade Harvard, tem 50 anos. Desenvolve pesquisas sobre América Latina, sistemas políticos, democracias e ditaduras. Escreveu, com Daniel Ziblat, o livro “Como as Democracias Morrem”, que sai em setembro no Brasil.
4 SINAIS PARA RECONHECER UM AUTORITÁRIO
Segundo Levitsky, devemos nos preocupar quando políticos:
1) Rejeitam, em palavras ou ações, as regras democráticas do jogo
2)Negam a legitimidade dos oponentes
3)Toleram e encorajam a violência
4) Dão indicações de disposição para restringir liberdades civis de oponentes, inclusive a mídia
AUTORITÁRIOS QUE CHEGARAM AO PODER ELEITOS PELA POPULAÇÃO
Casos citados no livro de Steven Levitsky
Hugo Chávez
Após comandar tentativa de golpe frustrada em 1992, elegeu-se presidente da Venezuela em 1998. Nos anos seguintes, alterou a composição e aparelhou a Suprema Corte, fechou emissora de TV, prendou ou exilou oposicionistas e eliminou barreiras que limitavam a ampliação de seus mandatos
Alberto Fujimori
Venceu nas urnas o escritor Mario Vargas Llosa em 1990, em meio ao colapso da economia peruana, prometendo renovação e combate à corrupção. Inábil para a negociação política, atacava publicamente políticos da oposição e juízes. Em abril de 1992 dissolveu o Congresso.
Recep Tayyip Erdoğan
Depois de tentativa de golpe contra seu governo, o presidente turco declarou estado de emergência e lançou mão de onda maciça de repressão, com o expurgo de cerca de 100 mil funcionários e funcionários públicos, o fechamento de jornais e mais de 50 mil prisões.
Donald Trump
Tentou punir ou expurgar agências que atuavam com independência e reescrever regras eleitorais de identificação de eleitores para favorecer seu partido
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